Do amor e das coisas vividas
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 15 de Julho de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Há 20 anos, quando casei, eu não sabia bem o que era amar. Foi preciso escrever uma desafiante narrativa comum, superando toda sorte de noção sobre o amor, para descobrir que o amor se faz por amar. Embora continue sem saber o que é mesmo o amor, estou contente em poder dizer que, nessa história toda, primeiro vem o verbo amar, a ação, para depois as coisas vividas se transformarem no sentimento substantivo de profundo bem querer. Em 1990 eu não pensava em nada disso. Estava apaixonado pela Andréa e decidimos fazer o que tinha que ser feito. 

A impressão que tenho é que quando decidimos casar não temos a menor condição de saber se amaremos ou não a nossa parceira, o nosso parceiro. Por isso, a primeira atitude que um casal precisa tomar é não dar ouvidos ao que se diz sobre o amor. Insistir em qualquer tipo de adaptação do que se pensa com o que se vive pode ser uma roubada. Assim como a felicidade, o amor não é nada, não é verdade, não é mentira. Ele se projeta e se encorpa na sua própria realização. 

Ano após ano, sempre aparece alguém nos perguntando o que é necessário para permanecermos juntos por tanto tempo. Respondo simplesmente que não temos tempo para pensar no tempo. Nas ocasiões em que a conversa segue um pouco mais no mesmo diapasão, argumento que considero um risco submeter trajetórias da vida a dois em uma só história. São muitos os percursos que construímos e não vejo vantagem na pavimentação de um ou outro deles como o verdadeiro. 

Quando nossos filhos nasceram, o Lucas há 11 anos e o Artur há 9 anos, resolvi fazer um mapa genealógico para eles. Fiquei impressionado com a anarquia das características evolucionistas da nossa brasilidade. Para chegar aos nossos filhos, tomamos o horizonte de tempo desde os nossos bisavós. O nome familiar da Andréa vem num combinado de Souto, Ferreira da Silva, Souza, Freitas e Pinheiro; o meu, vem mesclado de Sena Rosa, Loyola, Saavedra e Cavalcante, até sintetizar em Paiva. 

Quanta riqueza, quantas convergências preciosas de gerações anteriores temos em nós, quantos quereres vividos na formação do que somos. No dia do nosso sim, um dia 14 de julho como ontem, quando resolvemos pela aventura de explorar o afeto das nossas afeições, não poderíamos saber no que iria dar a nossa afirmação. Contávamos apenas com um outro que nos dava a sensação de que valeria a pena. Nessas duas décadas, já fomos diversas vezes tentados pelas provações do imediato, mas preferimos valorizar a conquista da superação dos obstáculos. 

O amor em si não serve para amar porque ele é uma tradução e não um fato. Os atributos físicos, intelectuais, emotivos e sociais não definem alguém a quem seremos ou não capazes de amar. Esses atributos são importantes para aproximar, contudo, insuficientes para descrever o mix de individualidades no insondável cotidiano. A nossa subjetividade dual, do indivíduo e do todo, só consegue se multiplicar em estágios e mais estágios de alteridade quando a gente tem a ousadia de viver a dois, de afluir a uma rota que passa pelo que é de cada um em sua diferença. 

As diferenças se manifestam mais em sensações do que em comportamentos, ainda que a força do hábito acabe dando a falsa impressão do contrário. Dou um exemplo: A Andréa costuma se referir ao que fizemos juntos, ao crescimento dos nossos filhos, com a expressão: “Como passa rápido”. Eu não acho, e digo para ela: “Se observarmos bem, fizemos muitas coisas nesses 20 anos e cada qual teve o seu tempo”. Na minha compreensão, interessa menos saber se o nosso olhar divergente está mais para a natureza da psicanálise ou da neurociência, do que para a riqueza da conversa gerada por conta dessa diferença de percepção. 

Já pensou se víssemos os nossos percursos sempre observados pelos mesmos ângulos? Teríamos apenas uma estrada, uma paisagem, uma velocidade e uma lembrança, até o dia em que viver juntos ficasse insuportável. Temos uma vida em comum, mas somos dois. Daí a importância de uma narrativa na sua dimensão múltipla e apta a acolher os estilos dos nossos pensamentos: ela, mais para o convivente e eu, tendente ao experimental. Essa abertura facilitou com que para a chegada dos nossos filhos pudéssemos engajar nossas histórias e nossa história a outras histórias que nasceriam em nossa vida familiar, comunitária e profissional. 

Os braços que abrimos para abraçar os nossos filhos, integrando-os às nossas vidas, chegaram a ser confundidos com falta de ambição social e profissional, por significarem em certas circunstâncias uma negação a “novos desafios” e a redução de presença em lugares que costumávamos frequentar. Certa vez ouvi de uma amiga interessada em envolver a Andréa em mais um projeto educacional importante: “Não dá, ela agora só pensa em cuidar de menino”. E de um amigo meu, ouvi: “Seu voo é voo de peru, baixo e curto”. Alguns demoraram a notar que a maior ambição que aprendemos ao nos tornarmos mãe e pai foi poder dispensar determinadas validades sociais para podermos reinventar as nossas perspectivas juntamente com os nossos filhos. 

Tenho a alegria de compartilhar com a Andréa vários dos princípios que norteiam o meu viver, dos quais destaco o seguinte tríptico filosófico: a) mesmo que tudo passe a se mover na mais alta velocidade, a vida em si sempre será lenta; b) mesmo tendo a consciência de que não dá para fazer tudo na vida, a única maneira de fazer tudo é nunca parar de fazer; c) mesmo que nos faça chorar, a morte é o mais sagrado ato de consagração de quem não se entrega a ela. Nunca chequei em que medida a Andréa tem esses meus pensamentos. Não fiz isso porque encaro as nossas contradições nelas próprias e não em nós; do mesmo modo que assumimos nossos defeitos em nós e não em nossos defeitos. 

Em 1990, fiz em parceria com o Eugênio Matos (www.eugeniomatos.mus.br) a música “Flávio & Andréa” para o nosso casamento: “No tempo / acima de quando / a fábula está lá, a vida estala…”. Era uma vez um arremesso de amor a ser perseguido pelo pulsar dos nossos corações. Agora, 20 anos depois, ouvi o estalo da fábula passando e compus, em parceria com o Josias Sobrinho (www.josiassobrinho.blogspot.com) a música “Por todos esses anos” para dar de presente à Andréa: “O tempo passa em nós / como uma voz / a nos dizer / o que não deve ficar pra depois…”. Era duas vezes um arremesso do amor a continuar pulsando em nossos corações. 

O que dizem essas músicas, senão que o amor é fruto de uma arte, uma experienciação, uma poética da vida? Gosto da ideia de achar que a Andréa e eu transgredimos os chavões do amor por não buscar justificá-lo. Amamos como amamos porque o amor serve mesmo é para amar. Pensar em ser o único complemento um do outro é uma condenação injusta. Escapamos das idealizações correntes, parte pela displicência espontânea dos desejantes e parte por não termos perdido tempo reclamando provas de carametade, nem de alma gêmea. 

O que tempos atrás eu queria para a minha vida não combinava com a consciência que eu tinha do amor. Quem me conhecia, duvidava que eu me casasse. Tive a boa fortuna de encontrar na Andréa a promessa de uma narrativa e não de um ritual. Nosso vínculo fundou-se no amar e não no amor. Assim, fluímos nossa intimidade afetiva nessas duas décadas, lado a lado com os nossos filhos, nossos familiares, amigos, as cores da nossa casa, os lugares por onde andamos e os ideais que cultivamos, para que tudo sempre comece de novo a cada dia.