Era meio-dia em Cabaceiras, sertão paraibano. O sol estava tinindo de quente. Dava para escutar a força da luz zoando por aquele mundão de Deus. À nossa frente, uma casa com o muro e a calçada ornados com curiosos mosaicos: de um lado, a cena de um grupo musical entre pés de xique-xique florados e frutificando; do outro lado, sobre pedras de um descampado lajedo, um casal em situação de amor, com viola, pássaros voando e um pé de mandacaru exibindo seu primeiro fruto.
A vontade de bater palmas no portão era grande, mas a hora não recomendava; as pessoas poderiam estar almoçando. O guia assegurou que não haveria problema e chamou a mosaicista, que nos recebeu afetuosamente. Seu nome é Iraci Soares Nunes, mas ela é conhecida como Cecília Soares. Pois dona Cecília do Mosaico nos brindou com um surpreendente passeio pelo interior de sua casa, com paredes cobertas por relatos visuais da sua vida familiar, santas e santos de sua devoção.
Como se abrisse as páginas de um álbum de fotografias, ela foi mostrando ambiente por ambiente, parede por parede, a representação do seu sistema de relacionamentos, pacientemente fixada em milhares de cacos de cerâmica. O cotidiano familiar, os nascimentos, as idas e vindas de queridas e queridos são temas presentes na arte musiva de dona Cecília, em forma de expressão existencial; um misto de decoração, memória e proteção.
Ao recriar cenas decalcadas dos sentimentos estruturantes de sua vida, o eu-lírico de Cecília Soares não se desfez de nada do que viveu e, ao mesmo tempo, evita voltas melancólicas ao passado. Morando dentro da própria arte, tudo converge para o que ela é, sem que ela abdique de si, nem fique sozinha. Notei que, ao falar dos murais, a artista repassa os momentos geradores da sua criação, com a paz do distanciamento.
Dona Cecília, com a autenticidade da sua percepção e do trabalho que realiza, põe em movimento o fenômeno da experiência presentificada. Como indivíduo, ela está no todo, e com o todo acerca de si, faz a aproximação da dualidade entre subjetividade e mundo objetivo. O que está fixado nas paredes da artista cabaceirense não é decalque da realidade, mas uma espécie de colagem de ‘noves fora’ dos valores integrantes das variáveis das equações do seu viver.
Nessa especial expressão de plenitude, dona Cecília do Mosaico envolve significação e entrega de corpo, alma e mente, sem onirismos ou qualquer afastamento da condição humana. A montagem congruente de fragmentos cerâmicos e passagens do seu dia a dia ao longo dos anos é um afazer prazeroso, um desfrute de instantes em que ela parece aplicar, pedaço por pedaço, tudo o que é, sente e faz.
Com as paredes internas, o muro e a calçada cheios de arte espontânea, a casa-oficina da mosaicista foi chamando a atenção das pessoas e, mesmo sem intenção comercial, ela passou a ser procurada para produzir obras para vender. Compreendeu que havia descoberto uma atividade para complementar a aposentadoria e encarou as provocações recebidas. Abriu uma loja do outro lado da rua, onde expõe jarros revestidos, quadros e outras peças de mosaico.
Cecília Soares é uma artista visual autodidata que aprendeu a eternizar presenças. O êxito da sua arte inspiracional vem da simplicidade e da pureza com que ela harmoniza pacientemente os conteúdos dos seus temas. Nos canteiros da praça principal de Cabaceiras ela revestiu em simetria ornamental grandes blocos com mosaico representativo da fauna, da flora e das expressões culturais e religiosas da região. Este é um caso em que se pode afirmar literalmente, e felizmente, que o costume de casa foi para a praça.
Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/01/16/dona-cecilia-do-mosaico.html