Incrustado em uma das encostas da Serra Grande, que separa e une o Ceará do Piauí, existe um lugar chamado Oiticica. De longe, dá vontade de ficar parado contemplando a beleza daquele pequeno povoado onde nada parece se mexer. De perto, entre prédios destruídos, casas abandonados e aconchegantes lares, também dá vontade de ficar um longo tempo ouvindo as histórias da dona Iá, 64 anos, que desde os dois anos de idade mora ali, de onde nunca pensou em sair.
A Oiticica é uma comunidade de vinte e poucas famílias que, tempos atrás, chegou a ter mais de cem, quando servia de estação de trem de passageiros. Hoje, só passam vagões de carga pela ferrovia que cruza o lugarejo, distante 62 quilômetros da sede do município de Crateús, na região do Vale do Rio Poti. A estrada é bem precária, mas a situação já foi pior, pois, quando não tiveram mais acesso por trem, os moradores ficaram isolados por muito tempo.
Dona Iá, segunda de três irmãs, de pais falecidos, vive em Oiticica com o marido, o ‘seu’ Toinho, pecuarista de subsistência. No domingo passado, 27, depois do almoço de galinha caipira, ela me contou que não tem a menor vontade de sair de um recanto onde pode criar bode, gado, porco e galinha, tudo solto, sem ter ninguém para perturbar. Agradece a Deus pelo sossego, pelas amizades e pelos bons vizinhos.
Índia de pele branca e olhos azuis, que, suponho, seja descendente da miscigenação nativa com os franceses que habitaram a Ibiapaba antes da chegada dos portugueses, dona iá, batizada Maria do Carmo, começou a cantar ainda menininha nas festas da padroeira N. Sra. do Carmo. E canta um trecho do drama cômico em que uma índia dá o fora em um caçador:
– Sou índia, nasci nos campos / Numa choupana modesta / Eu vim alegre cantando / Na solidão das florestas / Sou índia, sou índia / Tra-la-la-la-la-la-lá
– Tapuia, linda tapuia / O que vens aqui buscar?
– Eu vim buscar baunilhas / Que a minha mãe me pediu
– Menina, no cacaueiro / Nunca baunilha se viu
– Por aqui é o meu caminho / Para ir ao cafezal
– Por aqui não tem caminho / Nem café para apanhar
– Pois, então, eu vou embora / Branco aprenda a caçar / Quem deseja caça fina / Tem que saber farejar.
Baixinha invocada, dona Iá diz que nasceu em uma cama de folhas da barraca montada na localidade de Canabrava (PI), a 20km de Oiticica, onde o pai era feitor e a mãe fazia a comida dos ‘cassacos’’, como eram chamados os trabalhadores de recuperação da estrada de ferro em tempo de seca. Em Oiticica, o pai foi comerciante e depois roceiro, enquanto a mãe tinha um pequeno restaurante, a Pensão da dona Biluca.
Dona Iá conta que na vida faz tudo “com muito gosto e vontade”: cozinha, costura, toma banho de rio e pesca mandi de anzol, ‘com isca de minhoca’, realça. Na infância, tempo em que as pessoas apanhavam o fruto da oiticica e vendiam para a fabricação de óleo, tinta, verniz e sabão em barra, o ‘marrozinho’, ela já amava também a sombra fresca da árvore que deu nome ao seu lugar.
A suspensão da quietude em Oiticica só acontece uma vez por ano, e dona iá aprecia muito esse momento. É quando a comunidade se reúne para os festejos da padroeira, em torno do dia 16 de julho. “Muita gente que viveu aqui volta para essa festa. Vem amigos conterrâneos que moram nas redondezas, em São Paulo, Roraima, Goiás, Brasília, em tudo que é canto. A festa é religiosa e dançante também; a gente reza e depois passa a noite no forró”, dando vida à quadra de colégio desativado.