Doutor Patativa
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 26 de Outubro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Para convencer muita gente do inestimável valor do poeta Patativa do Assaré, por tantas vezes foi preciso dizer que ele estava sendo estudado na cadeira de “Literatura Popular Universal”, da Sorbonne. Era como enfiar prego em barra de sabão. Nosso atávico complexo de inferioridade colonial nunca falha diante de uma boa referência estrangeira. Com a aprovação do título de Doutor Honoris Causa, a ser conferido pela Universidade Federal do Ceará ao trovador caririense, felizmente entraremos o ano 2000 experimentando passos de superação do pudor reprimido da nossa academia, em favor da valorização institucional da cultura popular.
A sabedoria estóica desse poeta de mãos grossas, olhar prático e pensamento nu, preserva a fundação de uma cultura atropelada pela redução do tempo presente, na desmedida corrida da modernidade. Mesmo “sem português”, como se considera, vai além do universo social e transita com sua admiração bruta pelo imbricado mundo das significações telúricas. “Meu verso é como simente/que nasce inriba do chão/não tenho estudo nem arte/a minha rima faz parte/das obras da criação”. Ciente de que o pensamento estruturado é uma questão de saber olhar, escutar, tocar, cheirar, saborear e, principalmente, “matutar”, Patativa virou sinônimo da sua própria cultura.
Com o hábito de fazer versos “de cabeça” e de decorá-los por inteiro, aprendeu e ensinou como separar em rimas o essencial do acessório na arte de traduzir a vida. Sua estética sem ilusão, desequilibra a realidade trágica. A fluidez da palavra cantada e dos inúmeros fonemas grafados a fórceps escorre da sua fonte criadora como riacho de água doce umedecendo o solo fértil da caatinga. Nessa vigorosa lucidez, o testemunho poético de Patativa do Assaré encara o cotidiano sem desdém, na primorosa atitude de educar a alma no sentido da grandeza, a ponto de ter conseguido ser ouvido sem aparentemente ter voz.
O desejo verdadeiramente sentido de, através da poesia, levar as cores da sua iluminação aos acinzentados jardins sócio-políticos nordestinos, gerou, com humildade e magnitude uma obra de conteúdo social, de senso de justiça e de fé, socorridos pelo humor da natureza. A razão coloquial dos versos de Patativa disseca e transmuta empiricamente a realidade em flexíveis emoções de expressões fidedignas aos sentimentos mais puros. O saber local explode em laços de semelhança comunitários, enfrentando crenças e juízos comuns, descortinando horizontes prestes a serem observados, mas que normalmente nunca se sabe muito bem como.
Quanto mais o poeta foi ganhando notoriedade, mais conseguiu fortalecer suas raízes. Continuou lavrador e conversador de calçada, na rua da igreja de Assaré, onde mora. Com a sua capacidade de desprendimento do não-significante e sem o anseio de agradar na sua revelação, rompeu os limites do espaço, venceu os caprichos do tempo e cravou sua arte no coração das reservas de inteligência, exorcizando inclusive o preconceito culto. A distinção de títulos e medalhas acaba promovendo ilhas de raridades, pela força do pedestal e da glória. Antiquários, museus e livros estão, ao contrário, cheios de coleções mofadas e de heróis distantes.
Patativa tem bom fio terra, não representa apenas a si mesmo e “nunca quis fazer profissão da sua musa”. Ao transmitir sua percepção aguçada das coisas mais simples, elevando-as na cadência da palavra rimada, projeta no futuro um bem cultural de incalculável valor para o diferencial indispensável ao nosso desenvolvimento. Portanto, louvado seja o procedimento da UFC o que a faz chegar um pouco mais próxima da gente. Para Antônio Gonçalves da Silva, nascido há 90 anos em um sítio da Serra de Santana, no Assaré, e que só freqüentou a escola por quatro meses na infância, ser doutor, livrando-se de vestibulares e concursos, não deixa de ser uma conquista curiosa e nada mais. Seu mérito vai além da intuição técnica do exercício da gramática versificada. A grandeza de ser o admirável Patativa do Assaré está no seu olhar possível, inquieto, insubmisso e revolvedor. Ele que, desde criança, só contou com um olho para fazer tudo isso. O outro perdeu por dordói(1). Mas esta é uma outra história.
(1) dor-d’olhos