Ecos da mídia em crise
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Domingo, 17 de Março de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A decisão do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES – de socorrer a Globo Cabo com um aporte de R$ 284 milhões, como forma de amenizar uma dívida de mais de um bilhão e meio de reais do canal por assinatura das Organizações Globo é acintosa para um país com tantas necessidades reais de aplicação dos recursos públicos. O banco estatal justifica a operação alegando que com o desembolso estará evitando perder o que já teria investido na empresa. Como a dívida está indexada ao dólar norte-americano e boa parte dos credores é internacional, há a suspeita de que a articulação para a entrada formal do capital estrangeiro nas empresas brasileiras de comunicação seria mais uma manobra da Globo unindo a sua fome de poder político com a vontade financeira de comer.
A proposta de emenda para alteração no artigo 222 da Constituição, abrindo alas para a participação de investidores externos nas empresas jornalísticas nacionais, já passou pela Câmara dos Deputados e está no Senado. O que era proibido por respeitável prudência constitucional caminha para uma abertura de 30% ao capital de fora, em textos ambíguos e ameaçadores do que resta da soberania nacional. A criação de condições para que os interesses alheios possam influir mais do que influem nos meios de comunicação brasileiros merece atenção redobrada de uma sociedade que está fazendo de conta que o problema não é com ela.
Mesmo sem a presença direta do capital estrangeiro no negócio da informação no Brasil, o conteúdo e a forma da nossa programação em canal aberto já é praticamente importado. Não fica difícil imaginar um cenário com os gringos legalmente donos de parte dos veículos concessionários de comunicação. Uma guerra de interesses está no ar. Nesse front, até a Associação Brasileira de Rádio e Televisão – Abert – perdeu a unidade. SBT, Record e Bandeirantes estão formando a “Abert do B”, isolando-se da Globo no campo de batalha. Essa briga não é só por audiência, por fatia de mercado, mas por controle político do debate público. Daí o grande interesse estrangeiro na questão. O fenômeno de ascensão e queda da governadora maranhense nas pesquisas para presidente ainda está muito fresco e atesta com clareza essa força indutora da mídia.
O desejo de implantação da versão única dos acontecimentos tem movido as grandes redes multinacionais de comunicação. Com apenas dois momentos criativos de inserção simultânea na mídia mundial, os líderes talibãs desorganizaram toda uma estrutura de controle da informação: a derrubada das torres gêmeas de Nova Iorque fez o enunciado simbólico e a fala serenamente ameaçadora de Bin Laden, veiculada em uma fita de vídeo, autorizou as deduções. Foram situações de pânico que levaram o governo estadunidense a partir para a censura e para a ampliação do controle da comunicação no mundo inteiro. Mesmo assim, a imprensa deixou vazar alguns efeitos provocados pelo marketing do terror. O caso do garoto norte-americano que jogou um monomotor contra o prédio de um banco na Flórida, por declarada inspiração suicida ao carisma de Bin Laden, sugere muitas revelações.
Se com apenas duas inserções na mídia global os talibãs causaram estragos sem precedentes na honra do país mais poderoso do planeta, há que se imaginar o quanto somos vulneráveis a realidade filtrada e fabricada pela mídia de alcance internacional. Pior do que isso é quando a indústria cultural joga os holofotes em nossos estereótipos mais degradantes, solidificando com eficiência a imagem de sociedade em estágio civilizatório inferior. A exemplo do recente desenho animado do Piu-piu, no qual o ingênuo canarinho de Robert McKimpson, Charles Jones e Fritz Freelang – numa paródia “A volta ao mundo em 80 dias”, de Júlio Verne – passa pelo Brasil ressaltando com fina ironia a pobreza, a bandidagem e a impunidade na cidade maravilhosa. Num filme de animação para crianças parece um pouco demais.
No canal Futura, braço à cabo da Globo para abocanhar verbas destinadas a educação, vi há poucos dias um desenho sintomático. Um bichinho tentava salvar outro num carrinho de mão, mas perde o controle ao descer uma ladeira. Na parte baixa, havia uma porteira fechada e um terceiro bichinho que não entendia o pedido de socorro. O herói da historinha lembra de pedir em inglês que a porteira seja aberta. Dá certo e eles passam são e salvos. Moral da fábula: se o “bom samaritano” não falasse inglês ambos teriam morrido no choque contra o portão. E assim age o terrorismo subliminar do verdadeiro big brother. Para adultos, o estímulo ao auto-flagelo cultural tem sido menos sutil. A sátira grosseira da minissérie “O quinto dos infernos” é para deixar qualquer um inibido de querer ser feliz com um passado desses.
Em 1999, esboçaram-se algumas reações ao baixo nível da programação de tevê no Brasil. Mesmo tendo o debate ocorrido em tempo de renovar concessões, o governo permitiu que as próprias empresas de canal aberto alinhavassem seus códigos de ética. A banalização do sexo e da violência ganhou nova roupagem, mas continua um desrespeito à cidadania. Há poucos dias, assisti num programa local a cena de um motoqueiro morto a tiros. A imagem do corpo ensangüentado era mostrada entre risos e acenos de crianças para as câmeras. Tinha uma pessoa morta naquela festa animada e transmitida pela televisão. Na União Européia, associações de pais e de professores vêm se mobilizando para dar um basta na exibição de imagens de violência, sexismo e cenas que estimulam à criminalidade. No Brasil, o mais recente esforço nesse sentido é o projeto de lei do deputado mineiro Carlos Hauly (PSDB) que tramita na Câmara com o intuito de proibir, na mídia eletrônica, a publicidade de produtos exclusivamente infantis e assim reduzir a violência do consumismo. A crise da mídia reverbera no cotidiano. A pior atitude da sociedade é fingir-se de morta.