Passado um ano da chegada da covid-19 ao Brasil, país que conseguiu o sinistro feito de ter todas as variantes do vírus, é espantoso ver o quanto tudo por aqui foi praticamente desmanchado em um período tão curto. Como se não bastasse o empobrecimento da maioria da população, a insanidade do chefe do Executivo federal e de seus adeptos vem funcionando como exterminadora em massa, marchando para fechar por esses dias a conta faustuosa de 300 mil mortos.
Estamos asfixiados por fora e por dentro. Por fora, saímos da condição de protagonistas de uma geopolítica de multipolaridade para sofrer toda sorte de restrições nas relações exteriores, retroagindo à situação colonial de uma economia fornecedora de commodities. Por dentro, vivemos o grave problema da ausência da reserva moral que foi extraviada pelo grupo político que esteve anteriormente no poder, facilitando que a falta de vergonha se tornasse um trunfo da bandidagem.
Abalados por fora e por dentro, todos nós, uns mais e outros menos, desenvolvemos uma síndrome paraverbal sustentada por uma descontrolada vontade de desabafar. Assim como ocorre na tragédia sanitária, em termos de conduta coletiva, o processamento mental de informações não dá conta da variedade de mensagens responsáveis pela transmissão do discurso que alimenta o pandemônio brasileiro.
Logo no início da pandemia, a falta de ar manifestada em algumas metrópoles mundiais fez com que ouvíssemos a dor da humanidade em agonia, com seus funerais invisíveis e o tempo calculado em adeuses. Foi então que a cantora gaúcha Laura Finocchiaro e eu fizemos juntos e lançamos nos primeiros meses da chegada da covid-19 ao Brasil a música “Asfixia”, como uma catarse do sufocamento social, político, cultural e econômico associado ao novo coronavírus.
Máscaras, ruas desérticas, quarentenas e lockdowns passaram a fazer parte da busca por proteção de si e do outro, enquanto contrariamente promotores do caos trataram de produzir cortinas de fumaça e de fazer sombras a qualquer tentativa de encher os pulmões, de promover desfibrilação cardíaca e de arejar o cérebro por meio da arte, do amor e de tudo que cura.
Como é comum em meu trabalho de combinação da literatura com a música, ao tempo em que fazia a letra da composição escrevi o conto “Asfixia”, que será lançado quando a gente puder voltar a se abraçar. Nele, a situação alucinante do isolamento social físico é traduzida pelo desespero da ronda da morte em conflito com a retomada da confiança de viver; concatenação dramática que define o caráter dançante e nervoso da nossa balada punk de sobrevivência.
Na condição de música realista, imaginária e depurativa, “Asfixia” guarda um quê de “I will survive” (1978), o grande hit dos compositores estadunidenses Dino Fekaris e Freddie Perren (1943 – 2004), interpretado por Gloria Gaynor, que se tornou um hino libertário de todas as pessoas que reúnem forças para romper com o que as oprime. No aspecto da pressão sufocante e do extravasamento há uma conexão de memória angustiante e propositiva entre as duas músicas, seus tempos e seus motivos.
Tomando como referência os embalos da rainha da discoteca, pode-se dizer que o medo e o incômodo são pontos de partida para o aprendizado da sobrevivência, e, mais do que isso, para o desejo e a vontade de seguir de cabeça erguida. Todas e todos têm uma vida para ser vivida, e, como em “I will survive”, a música e o conto “Asfixia” partem do princípio de que a arte de sobreviver passa por ter amor para dar.
Veja o videoclipe de Asfixia, de Flávio Paiva e Laura Finocchiaro