Educação de rua
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.6
Quartas-feiras, 16 e 23 de outubro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE 16/10/2013
FAC-SÍMILE 23/10/2013
Parte I, 16 de outubro de 2013
O colapso do modelo de crescimento urbano, com as demarcações dos contornos da cidade voltadas, não para o benefício das pessoas, mas em favor dos interesses econômicos, com a conivência dos poderes públicos, chegou a um nível tão elevado de degradação social, cultural e política que requer amplas mobilizações ressocializantes. Dentre o que pode ser feito para a reversão desse quadro de decadência, é imprescindível considerar a criação de condições para que as crianças descubram pontos de interesses nos centros urbanos, onde possam se reconhecer e contribuir com o que deve ser preservado e o que deve ser transformado.
A fim de que meninas e meninos possam agregar concretamente suas colaborações à vida urbana, é necessária uma mudança no modo como a criança é pensada na cidade. Fiz algumas reflexões sobre o assunto na conferência “Educação de rua – O papel da criança nas relações urbanas – Da brincadeira de descoberta ao sentimento de pertença”, dirigida a gestores municipais de educação do Ceará, dentro do seminário “A cidade e a criança”, promovido na segunda-feira passada (14) pelo Instituto Stela Naspolini, na Universidade do Parlamento, em Fortaleza.
O conceito de “educação de rua” tem sido normalmente utilizado para designar políticas de assistência social. A minha proposta, no entanto, é de ampliação dessa ideia para a montagem de um Sistema de Educação de Rua (SER), envolvendo governos, iniciativa privada e entidades da sociedade civil. Neste mesmo caderno Vida & Arte, já havia escrito sobre a importância do acesso das crianças das mais diferentes camadas sociais aos espaços públicos de igualdade de convivência, a fim de que, saindo do isolamento “seguro” dos ambientes fechados e sem medo do “arriscado” ambiente exterior, aprendam “a sentir algum sentido de utilidade com relação ao lugar onde moram” (“As crianças sem rua”, O Povo, V&A, p.6, 05/12/2000).
Querer simplesmente humanizar a cidade é muito pouco. Ser humano é espécie e as cidades que estão aí foram inventadas pelo bicho socialmente primitivo que, via de regra, ainda somos. A educação de rua precisa estar além do nível da sobrevivência e da lei do mais arrogante para que haja mais e mais expressões do simbólico e da imaginação. Ser pessoa na cidade é aprender a olhar e a sentir o que está em volta, a observar a dinâmica de cada lugar, os transeuntes, acatando diferenças, agindo e tomando consciência do tanto que a mudança de cada qual depende do que o outro sugere.
Um Sistema de Educação de Rua (SER) teria a cultura como ponto de partida, teria o ponto de vista estético como base para o restabelecimento da vida comunitária urbana, como lugar de realização de desejos concretos e difusos. Programas que educassem para os obstáculos ao entendimento da alma da cidade. E a alma da cidade circula pelas ruas, no gesto do encontro, no imprevisível, na alegria do não estar só, na festa do desprendimento, na liberdade de ser qualquer um, no lugar do tempo em que nos devolvemos ao outro, na efervescência que soa… da pessoa.
Aprender sobre a cidade é aprender a construí-la enquanto a usamos, enquanto mantemos contato direto com tudo o que a compõe. Neste aspecto, não dá mais para falar da infância como promessas e projetos de futuro. As crianças têm uma experiência presente e precisam que, em nome da insegurança, deixemos de lhes tirar a oportunidade de desenvolver a noção do seu papel no usufruto e nos cuidados com a cidade, seus jardins, sua paisagem, seus bairros e seus habitantes de todas as idades e condições sociais, depositários de diferentes repertórios de troca.
O tratamento das áreas públicas como lugares de aproximação aumenta as opções de frequência criativa, de lazer, esporte, arte, ócio e contemplação. É, por conseguinte, exemplo patente de equívoco educativo de rua interferências como a proliferação, nos últimos anos, de estátuas de santos nos espaços livres de logradouros de Fortaleza. Esse tipo de prática discriminatória, endossada pelo poder público, é tão desrespeitoso para a coletividade quanto a emissão de música às alturas a partir de aparelhos de som fixados em malas de automóveis.
Ao desenvolvimento de um SER cabe a valorização de ambiências de compartilhamento, lugares propícios à saúde da mente e do corpo e do restabelecimento dos interesses comuns da vida em sociedade. Logo, não se trata aqui apenas de patrocínios de lazer, de shows em praças e de outras intervenções afins. Para que haja educação de rua, a vida comunitária e ambiental deve primar pela naturalidade dos costumes e estar espalhada por toda a cidade, em uma abertura sistemática de espaços para quem respira cultura e para os experimentos dos coletivos urbanos. Longe das metas de atingimento de grandes audiências impostas a centros culturais e mais longe ainda dos planejamentos urbanos que não levam em conta a escala infantil.
Final, 23 de outubro de 2013
A criação de um Sistema de Educação de Rua (SER), adequado ao envolvimento da criança no usufruto e na construção permanente do sentido de cidade, deveria alcançar bairros ricos e pobres, principalmente aqueles caracterizados por serem depósitos de pessoas. Muita gente pensa que a ideia de bairro dormitório está vinculada apenas a áreas de baixa renda, mas não é bem assim. Em Fortaleza, o bairro do Meireles, com seus prédios luxuosos da avenida Beira Mar, é um caso típico de zona urbana empobrecida pela ausência de escolas, centros culturais e outros equipamentos de grande importância para a vida comunitária.
O estímulo para que as crianças circulem pela cidade está ligado ao aprendizado das perguntas. Ao depararem com obras públicas e privadas, monumentos, mobiliário urbano, nomes de ruas, lixo, mendigos, falta de calçadas, pouca cobertura vegetal, barulho, esgotos a céu aberto, poluição sonora, polícia, bombeiros, congestionamento de trânsito, fiação de postes que enfeiam a cidade e podas agressivas de árvores, as crianças tendem a cobrar respostas às suas descobertas.
Tendo oportunidade, as crianças podem ser também criadoras do sentido urbano, inclusive da percepção de que a cidade é uma construção cultural erigida em cima do chão, como extensão do solo. Um simples programa de grafitagem de muros já tem seu valor de configuração de pertencimento pela criação de laços referenciais. A realização de concursos de fotografia, que estimulem as crianças a revelar o detalhe, a escolher o objeto a ser fotografado e a contar as razões da sua escolha é um exercício maravilhoso de educação ao ar livre.
A promoção de campanhas inventivas de conhecimento da cidade convoca a observação infantil a dar um basta no sentimento de impossibilidade e a dar um jeito de se deslocar a lugares tabus, como cemitérios e seus significados da morte como evento público da vida dos vivos, e a lugares de experiência multissensorial, tais como os polos gastronômicos e feiras agroecológicas. Isso pode ser feito por meio de uma ligeira combinação de tecnologia com caminhada, qualquer coisa como “ache na internet, ache na rua”, em pegada de jogo.
A elasticidade à visão do real daria muito reforço a um SER, se instigada por uma política pública de arte urbana. Seria, para as crianças, motivo de grande encantamento se elas pudessem brincar em um parque com esculturas do Descartes Gadelha ou em uma praça Chico da Silva (1910 – 1985), com a reprodução, em esculturas e painéis, de seres imaginários que povoam a pintura desse artista acreano-cearense. No íntimo do conceito de escala infantil, a que me referi anteriormente, encontro na figura do Capitão Rapadura, do cartunista Mino, um personagem perfeito para estar esculturado em um banco de praça de Fortaleza ou de qualquer cidade do interior, do mesmo jeito que a Mafalda, do cartunista Quino, está exposta à criançada em Buenos Aires.
Na questão ambiental há uma infinidade de ações que podem propiciar fontes de entendimento de que a cidade tem natureza. Sabendo que o meio urbano não é formado apenas por recursos artificiais, a criança tem a chance pedagógica de descobrir os benefícios que o verde nos oferece. Cada lugar preservado, desde as pequenas áreas verdes de vizinhança até os grandes parques, surge para meninas e meninos como provas de que antes de centro urbano a cidade já tinha vida. A obtenção de mais eficácia para essa percepção dependeria em um SER, de apenas pequenos gestos identificadores dos nomes das árvores em situação de rua, de campanhas de plantação de mudas, de rodízios de cuidadores de plantas e de projetos sociais fomentadores da ideia de verticalização verde.
Nos terrenos baldios e em outras áreas socialmente deterioradas, o poder público, afinado com a educação de rua, forçaria a mudança do estatuto de domínio de especulação imobiliária para o de desenvolvimento de ambientes de convivência. Esses espaços são fundamentais para a realização de projetos de fortalecimento cultural tentacular. Recordo-me que, no começo da década de 1980, no terreno onde hoje funciona o shopping Benfica, em Fortaleza, havia uma lona de circo conhecida como Teatro Móvel. Alguma coisa como aquela lona poderia servir para circular arte e alegria pela cidade, em um misto de instalações, saraus juvenis, campeonatos de videogames, recitais e espetáculos circenses.
A satisfação do conhecimento da linguagem da redondeza, do domínio do que está próximo e da familiaridade com o entorno torna-se mais forte quando bairros são interligados e consórcios intermunicipais de convivência por afinidades culturais são estruturados em redes horizontais de regeneração urbana, suportados pela reconstituição da vida comunitária. A noção de cidade acontece quando os espaços públicos tornam-se lugares, quando estes passam a representar alguma coisa para as pessoas.