Educação para a cidadania
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 06 de Dezembro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
As transformações sociais, econômicas e políticas vividas pelo Brasil no momento atual requerem uma educação à altura do diferencial comparativo das suas riquezas naturais e culturais: uma educação voltada à construção de um projeto de país. Para isso, cabe ao sistema educacional brasileiro ser, antes de tudo, eficiente na formação das pessoas para a cidadania. Com as proporções alcançadas na atualidade pela educação tecnomidiática e digital, esse desafio está cada vez maior, mais complexo, mais indispensável e mais urgente.
Perguntas como “qual educação?” e “qual cidadania?” passaram a exigir constantes atitudes reflexivas da comunidade educativa, tornando impreterível o investimento na preparação continuada de professores. É o que vem fazendo com que Sobral, a 238 quilômetros de Fortaleza, ocupe lugar de destaque na educação nacional. Estive lá, no sábado passado (01/12), fazendo a palestra de encerramento do VII Encontro de Educadores (de 29/11 a 01/12 de 2012) do Projeto Novos Olhares, realizado pela Escola de Formação Permanente do Magistério (Esfapem), e posso dizer que é empolgante testemunhar esse misto de orgulho e comprometimento.
Tive a oportunidade de compartilhar com educadoras e educadores de Sobral e dos municípios da sua região metropolitana, que lotaram o auditório do Centro de Convenções, uma sequência de conceitos que venho esboçando a respeito das metáforas da modernidade, dos grandes atos virtuosos da humanidade e da cultura em 4D, como recursos educativos para o fortalecimento e a consolidação da “cidadania orgânica”, conforme defino o estado de participação social no qual as pessoas dão relevância ao cotidiano pela associação das suas vidas à vida do planeta.
A atual crise de significados me faz recorrer ao dilema da incompatibilidade trágica, que nos impõe a necessidade de posicionamento “por suicídio ou por esperança?” na hora de fugir do absurdo, conforme refletido pelo pensador argelino Albert Camus (1913 – 1960), a partir dos traumas de quem sentiu na pele os presságios das guerras mundiais ocorridas na primeira metade do século passado. Assim como Camus, eu acredito mais na revolta do que na capitulação diante da inutilidade e da inconsequência de muitos dos nossos esforços em favor do absurdo no curso da hipermodernidade.
O primeiro movimento da educação rumo à cidadania orgânica é a atenção para a cultura nas suas dimensões de expressão do lugar onde a vida acontece, de respeito e valorização de quem a interpreta e refina, de criação de condições para a dinamização das trocas de saberes e conhecimentos nos mundos sociais físicos e virtuais, e de oferta de conteúdos e ambientes agradavelmente distintos para quem chegar. Na economia pós-crescimento, quando rico for quem tiver um pequeno pedaço de terra e quem conseguir momentos desconectados para a reapropriação seletiva do tempo, a principal matéria-prima será extraída dos conteúdos culturais.
A educação dos sentidos e das novas maneiras de ler e de atuar no mundo é uma plataforma para a coesão e para o bem-estar social. No frescor do tempo, a memória, a história e a expectativa de destino são janelas que se abrem e se fecham em constante ressignificação. A ética, enquanto habilidade de distinguir e procurar o bom, o decente e o agradável, é um atributo natural do humano, que precisa ser refinado. A moral, por sua vez, está ligada à conduta e ao modo de agir social, portanto, trata-se de um atributo do coletivo, que varia de acordo com as circunstâncias e os contextos culturais e históricos.
O êxito da formação do ser social para a cidadania orgânica depende em muito do aproveitamento dos atos virtuosos colocados em ação pela humanidade na sua longa e intensa aprendizagem evolutiva. O que chamo de ato virtuoso é a prática social da sensibilidade no que temos de melhor na nossa disposição para fazer o bem e para contribuir com a perpetuação da experiência humana. Um ato virtuoso não é apenas uma qualidade ou um sentimento, como a bondade, a solidariedade, a honestidade e o senso de justiça; ele surge com a interação efetiva do sujeito no dia a dia do viver.
Quando digo que a cooperação é um dos primeiros atos virtuosos da humanidade, refiro-me ao modo concreto como os nossos ancestrais descobriram que na companhia uns dos outros poderiam assegurar a sobrevivência e a perpetuação da espécie. Tão atual e tão primitivo é também o ato da tolerância. Não foi fácil suportar a diferença em favor da sociabilidade, mas avançamos e o relacionamento com alguém que possui necessidades, desejos e vontades próprias acabou contribuindo significativamente para a evolução.
Do interesse pelo outro nasceu o espírito solidário e a compreensão de que todos nós temos fragilidades que merecem ser consideradas. E quando essa atenção acontece, não pela tentação de se mostrar superior ou mais forte, mas pelo impulso sincero de desejar o bem, pode-se chamar esse ato virtuoso de generosidade. Como nas hipóteses do jogo simbólico da infância, a humanidade foi encontrando respostas entre erros e acertos. Fruto da cumplicidade e do anseio de compartilhar aspirações comuns acertou mais uma vez na descoberta do que intitulei de idealidade, ou seja, o ato virtuoso da consciência individual voltada para o coletivo.
O ato virtuoso da moralidade, sob o aspecto de condição essencial para reger os costumes, o da alteridade, considerada como recíproca à visão do próximo, e o da gentileza, enquanto a presença que estabiliza o outro, complementam as sete invenções sociais que atravessam o tempo em aprimoramento e que continuam fundamentais à educação para a cidadania, nesses tempos de transmigração que qualifico como Baixa Modernidade, numa alusão à Baixa Idade Média, quando há cerca de cinco séculos a crise do modelo de produção e proteção feudal deu ensejo ao Renascimento.
Não houve ainda uma ruptura que alterasse a base dos fundamentos da modernidade. A incapacidade de ouvir o outro, o cientificismo e o excesso de racionalidade no ordenamento da sociedade ainda não sofreram descontinuidade. Por isso, uso a metáfora do “lenhador” para caracterizar essa baixa modernidade. O lenhador é um predador da flora, um destruidor da própria base de subsistência, um agente da insustentabilidade. Ao deixar o solo infértil e impróprio para o florescer da vida, a figura do lenhador assume a antítese do cidadão orgânico.
Como tenho a esperança de que daremos a volta por cima e que a tendência da humanidade será reduzir as práticas infecundas do lenhador para ampliar a germinação do que temos de melhor no aprendizado da humanidade, propus também a metáfora do ser humano para a era (ainda sem nome) que virá logo após a hipermodernidade: o lavrador. O lavrador seria ou será a sublimação do cidadão orgânico, por ser alguém que cultiva a simplicidade, que faz a semeadura do que é preciso produzir para viver, usando a ciência e a tecnologia em favor do usufruto pleno do que a vida nos oferece.
A educação para a cidadania orgânica é a cidadania do lavrador, onde quer que ela aconteça, sem restrições de territórios, classes, categorias, partidos, gênero, faixas etárias ou etnias. É a reaproximação da cultura com a natureza em um fluxo mental intuído e antenado, em rede, integral e integrado, experienciado, socialmente participativo e, acima de tudo, consciente de que ser rico é ser uma pessoa de valor. Tudo vivido com o que de mais genial a inteligência humana foi e é capaz de criar e com a sabedoria de que também somos animais naturais.