Em tempos de atos selvagens
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 29 de outubro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

FAC-SÍMILE
op_emtemposdeatosselvagens

Depois de votar, no domingo passado (26), fomos ao cinema ver “Relatos Selvagens”, do diretor argentino Damián Szifrón, no Dragão do Mar. A dureza do segundo turno da campanha para o governo do Ceará e para a presidência da República recomendava algum tipo de relaxamento, enquanto eram apurados os resultados da opção de cearenses e brasileiros depositada nas urnas.

A escolha do filme não poderia ter sido melhor. Aliás, “Relatos Selvagens” tem um veio de fino humor negro bem adequado à catarse dos atos irracionais e odientos que marcaram o período eleitoral. Em seis episódios de situações distintas e com um elenco de grande qualidade, o longa oferece ao espectador uma narrativa de convergência para rir da estupidez.

A tensão tragicômica é uma constante em cada capítulo. O recurso exagerado da caricatura, a corrosão da sátira e a insuportabilidade de situações cotidianas estressantes provocam risos avergonhados do tipo de sociedade em que vivemos. A perda de controle manifestada pelos personagens em cada segmento do filme traz como pano de fundo algumas questões morais associadas ao infortúnio.

O diretor encadeia a fauna urbana em histórias que vão além da brutalidade da sua dimensão instintiva. Os personagens de “Relatos Selvagens” experimentam o amargo sabor da intolerância causada pelo acúmulo de restrições e sentido de impotência diante do sentimento de injustiça, seja coletiva, seja individual. Nesse estado de insalubridade psicossocial, qualquer detalhe, qualquer contrariedade ganha proporções gigantescas.

O que o episódio de abertura tem de curto tem de formidável em sua ativação do inconsciente e da irracionalidade. Com âncora freudiana, a trama revela a desforra altamente bem arquitetada de alguém que já não suporta mais a pressão social em seus mais variados vetores de formação e desconstrução do indivíduo. O fato espetacular guarda um quê da destruição do World Trade Center estadunidense, tendo como metáfora das torres gêmeas o pai e a mãe de um certo Gabriel Pasternak.

É bem sintomático o relato kafkiano do “Bombinha”, como passa a ser conhecido um respeitável especialista em implosões de edifícios que reage com indignação ao funcionamento burocrático do estado depois de ter o carro rebocado indevidamente. Assim como o bancário processado sem saber o motivo – no romance do escritor tcheco –, o engenheiro do filme de Szifrón é um profissional dedicado e exemplar levado a impulsos violentos contra o sistema, a ponto de ser demitido do emprego estável, de ser preso e de quase perder a família.

Um rompante de solidariedade se dá com uma ex-presidiária que toma as dores da colega de trabalho em um restaurante de beira de estrada, quando esta se depara com um agiota repugnante, responsável pela ruína da sua família. Esse episódio tem a ambiência desolada trabalhada por Percy Adlon em Bagdad Café. Aproximadas pela revolta contra a perversidade do sistema financeiro sobre as pessoas, a garçonete e a cozinheira tomam cada qual uma solução a sua maneira.

Um dos capítulos mais grotescos da coletânea cinematográfica de Damián Szifrón é o do jovem de uma família rica que atropela uma mulher grávida e os pais iniciam uma negociação ilegal para livrá-lo da cadeia. A corrupção deslavada coloca os corruptores em uma situação de extorsão por parte do próprio advogado, demonstrando, mesmo sem o propósito de lição, que no mundo cão a lei da falta de ética comanda um drama infernal, inclusive para quem, como o motorista da família, confunde lealdade com submissão.

A tosca aventura dos tempos atuais tem na trama de “Relatos Selvagens” sua translação para o choque de classes fomentado à exaustão pela insensatez do jogo de poder bipolar que ameaça a democracia e a cultura mestiça brasileira e latino-americana. Tudo isso está brechtianamente bem representado na parte em que a perda de controle emocional leva às últimas consequências a rusga entre o condutor de um carro de luxo e o condutor de um velho automóvel em uma estada deserta.

O episódio menos potente do filme é o melodrama almodovariano, no qual uma crise de ciúmes causa reviravolta nos humores e horrores de uma festa de casamento. Por ser o último e o mais longo dos seis segmentos, a expressão do ridículo se dá em caráter mais espalhafatoso do que de humor negro. O destempero da noiva, do noivo e dos familiares, deflagrado por uma descoberta de traição, não chega a passar do risível; o que, de certo modo, acaba funcionando como arrefecedor da tônica de violência presente no longa.

Terminada a sessão, tomamos conhecimento do resultado das urnas: Camilo Santana estava eleito governador do Ceará e Dilma Rousseff reeleita presidenta da República. Os comentários por onde passávamos giravam em torno do extremo a que chegou o terrorismo eleitoral da revista Veja e das postagens histéricas de pessoas promovendo a ideia odienta de racha social no país. Sinceramente, diante de tantos atos selvagens reais, por alguns instantes deu vontade de voltar para a sala de cinema, onde os acontecimentos fictícios pareciam mais tragáveis.