Emancipação da infância
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.5
Quarta-feira, 24 de dezembro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Dos lugares que eu tinha vontade de conhecer, o sítio onde Monteiro Lobato (1882 – 1948) nasceu e passou a infância era um deles. Estive lá há poucos dias. No entorno daquele casarão do século XIX, feito em taipa de pilão, localizado no bairro Chácara do Visconde, em Taubaté, no Vale do Paraíba, floresceu a experiência de infância que resultou no Sítio do Picapau Amarelo, uma das mais importantes obras da literatura infantil mundial.
A estrutura interna da casa, onde funciona o Museu Histórico, Folclórico e Pedagógico Monteiro Lobato, deixa muito a desejar, tendo em conta a grandeza do tema que abriga. O bosque, no entanto, é mágico, com seu encantador jogo de claro e escuro, abençoado por árvores acolhedoras. Sentado em uma cadeira, formada pelo colo da Dona Benta, refleti livremente sobre a fantástica contribuição de Lobato ao entendimento da emancipação na infância.
Em seu esforço de oferecer às crianças uma educação com base em uma vida comunitária de possibilidades criativas, ele produziu conteúdos pedagógicos altamente inovadores. Passei uma manhã inteira fazendo nada naquele lugar e, ao ir embora, fiz questão de parar o carro para fotografar a placa da rua “Príncipe Escamado”, homenagem a um dos personagens lobatianos que embalaram as contações de histórias para os meus filhos na hora de dormir.
É impressionante como Monteiro Lobato organizou sua literatura para conseguir a adesão das crianças, numa frente em favor do nivelamento de direitos do ser pessoa, adulta ou criança, sem cair em perturbações de papeis e referências sociais. No sítio da Dona Benta, o afeto e a confiança são mais relevantes do que as normas e os poderes de qualquer autoridade. No seu desejo de fundação de um Brasil ideal, Lobato valorizou a escuta e a tolerância mediadora como recursos essenciais à evolução da aprendizagem para o indivíduo e sua vida em sociedade.
No sítio, os valores da tradição estão associados aos das descobertas, e as hierarquias cedem lugar à flexibilidade do interesse do outro, na sua condição de semelhante. Tudo inspirado no sentimento de pertença a um mundo transterritorial e transetário comum, por onde a criança circula, pensa e age dentro do mesmo espírito do direito e das responsabilidades coletivas dos adultos, tendo claramente a consciência de que não é um adulto.
Sentado no colo de vovó da Dona Benta observei crianças brincando no coreto do sítio. Elas subiam e desciam as escadas, faziam gestos de Adedonha e vez por outra aparecia um adulto para fotografá-las. Como nas histórias infantis de Lobato, aquela cena revelava a força da estabilidade mútua entre a criança e o adulto, decorrente da dinâmica do distanciamento e da proximidade: as crianças brincam livremente porque sentem a presença quase invisível do adulto e o adulto sente-se confortável por poder se ausentar quase sem sair de perto.
Um pouco mais ao fundo, uma família, formada pelo pai, mãe e um bebê, preparava-se para uma foto ao lado das estátuas da Tia Nastácia e da boneca Emília. Ofereci-me para fazer a fotografia dos três e depois pedi que eles fizessem uma foto minha também. Abraçado com essas duas personagens do sítio meditei um pouco sobre a genialidade de Lobato quando fez da Tia Nastácia e da Emília um núcleo familiar sem pai, já que a boneca foi confeccionada pela Tia Nastácia, a figura da mãe solteira que costuma ser agredida pela filha com palavras irrefletidas e descabidas.
Caminhei pelo sítio com o contentamento dos que se sentem privilegiados por estar fisicamente em um ambiente mitificado pela literatura. Cada árvore, cada desnível no chão, é motivo para divagações. Deparei com um velho pé de jaca, carregado que só. Fiquei imaginando como terá sido a relação do autor do Sítio do Picapau Amarelo com aquela jaqueira. Foi, então, que notei uma estátua de Lobato ao meu lado, como se estivesse ali para dar estabilidade ao zanzar da minha imaginação. Fiz um “selfie” com ele, para guardar de lembrança a imagem daquele instante fecundo.
A obra de Monteiro Lobato, que morou naquele sítio até os doze anos de idade, desenvolve-se com muita clareza em uma perspectiva ainda hoje confusa no meio educacional. Ele conseguiu, com a pedagogia da Dona Benta, animar personagens infantis autônomos e interdependentes no desenrolar da individuação, desembaraçando o grande dilema da educação na atualidade, que é a dificuldade de calibrar a emancipação da infância no que ela requer de espaço para a proatividade da criança no convívio social, considerando a incapacidade de meninas e meninos de discernir legalmente o que são em direito.
O Sítio do Picapau Amarelo chegou antes e ainda continua insuperável na maneira de solucionar a necessidade de coexistência da igualdade dos diferentes entre crianças e adultos. Arrisco dizer que o segredo pedagógico da literatura infantil de Monteiro Lobato está no uso da cultura como plataforma educacional. Com lastro cultural e respeito ao interesse do outro, a educação reduz seus riscos de ambiguidade, tornando-se mais sincera, mais atraente, mais aconchegante e mais socialmente preciosa.