Para contar como escritores, artistas, filósofos e poetas construíram a percepção do caráter, da espiritualidade e do sentido de destino russo, o historiador britânico Orlando Figes mexe e remexe a essência de uma poderosa cultura multiétnica, influenciada pela arte e literatura. No livro Uma História Cultural da Rússia (Record, 2018), ele, com leveza e profundidade, circula do Oriente ao Ocidente, tendo como estações emblemáticas as cidades de Moscou, de origem cristã e medieval, e São Petersburgo, fundada para promover a europeização russa.
Figes inicia sua narrativa fazendo referência a uma cena de Guerra e Paz (1868), de Tolstói, momento em que, ao visitar uma cabana na floresta, a jovem condessa Natasha Rostova tem uma inusitada sensação ao ouvir pela primeira vez uma balada pastoril tocada em balalaica por servos caçadores. E ela, que fora educada em padrões franceses, dança, emocional e instintivamente, uma dança camponesa, movida pelos fios invisíveis da trama cultural existente por trás das crenças e dos interesses dominantes.
Naquele encontro entre a modelagem escolar europeia e o espírito da cultura camponesa russa, alguns elementos, como os detalhes do xale persa usado por Natasha e o som do instrumento de cordas descendente da dombra asiática, expressam a riqueza e a complexidade de um país que do alto dos Montes Urais tem um pé na Ásia e outro na Europa, um conflito que desafia permanentemente a Rússia a buscar o seu lugar e papel no mundo.
A obra de Figes faz uma excelente contextualização de acontecimentos históricos a partir da forma como as manifestações culturais e seus artistas, poetas e escritores influíram nos conflitos de poder. Em que pese o recorte primordial entre os séculos XVIII e XX o tempo da narrativa é bem elástico, remontando à época em que o território russo foi tiranizado pelos mongóis (séc. XIII a XV), passando por ancestralidades eslavas (séc. IX a XIII) da bizantina Moscóvia e suas aldeias espalhadas pelas estepes e florestas.
Nas artes, na literatura e na poesia mundial são inúmeros os nomes relevantes que com qualidade imaginária e desvelo etnográfico contribuíram para construir a história da Rússia: O dramaturgo Anton Tchekhov, os compositores Stravinski e Tchaikovsky, a bailarina Anna Pavlova, o pintor Chagall, o poeta Alexander Pushkin e os escritores Nikolai Gogol, Liev Tolstói, Máximo Gorki, Boris Pasternak e Vladimir Nabokov são algumas dessas notáveis referências.
Inspirado na grandeza da criação desse nível de autores, o ensaio de Orlando Figes mostra como a energia artística e literária de um país foi canalizada em obras de sutilezas íntimas capazes de ressignificar a pluralidade e a diversidade da cultura russa. Dá gosto ler um historiador quebrando regras da cronologia e do ordenamento dos fatos para valorizar a coerência temática.
No mundo dos czares e da servidão em massa, o autor destaca a mobilidade social permitida a indivíduos criativos, mesmo sendo estes também propriedade do senhor. Foi o caso da serva cantora Prakovia Kuznetson, que casou com o conde Nikolai Sheremeter e tornou-se a primeira grande estrela da ópera russa, num momento em que predominavam os pequenos teatros particulares na vida musical e social do país. [Continua na terça, dia 26/06].