Espadas de carnaúba
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 12 de Abril de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Havia contado aos meus filhos que quando eu era criança usávamos espadas de haste da palha de carnaúba para as nossas brincadeiras de luta no meio dos matos. Fazíamos as próprias armas e inventávamos combates inspirados nas revistas e filmes do Zorro. Usávamos máscaras confeccionadas com tiras de câmara de ar de pneu de bicicleta e as nossas espadas eram flexíveis e tinham tampa de lata de leite adaptadas como proteção de mão. Era uma das minhas diversões favoritas. Eles quiseram ver como era isso e aproveitamos o feriadão da Semana Santa para essa aventura.
Confirmamos com o meu pai e ele disse que no terreno onde ele mora, em Independência, ainda existiam pés de carnaúba. Descansamos um pouco depois do almoço no sábado (7/4) e ficamos esperando o sol dar uma trégua. Mesmo com a escassez de chuvas e com o calor intenso do sertão em ciclo de seca, como agora, a nossa casa conta com uma significativa área verde permanente, cujo sombreado facilitou a caminhada. Cruzamos o leito seco do rio Cupim, passamos ao lado do pé de canafístula, onde os meninos têm uma casa na árvore, galgamos uma pinguela, abrimos e fechamos cancelas e no fim do denso algarobal, encontramos as carnaubeiras.
O chão estava cheio de palhas caídas. Poucas em bom estado original. Deu, contudo, para escolher quatro delas em tamanhos e formatos diferentes, sem que fosse necessário fazer qualquer corte novo. Meu pai ensinou os netos a retirarem os espinhos dispostos ao longo da haste que liga cada palma ao talo e retornamos para casa, a fim de preparar as espadas. Pelas veredas, eles revelaram que pensavam ser preciso tirar lascas do tronco para fazer o brinquedo. Estavam contentes porque as espadas seriam produzidas com aquele material que tinha cumprido a sua função natural e estética, a mais de dez metros de altura nas copas dessas palmeiras cosmogônicas.
Em um converseiro animado, eles começam a imaginar o quanto naquele bosque daria para fazer de filmes de ficção. O ambiente permite o elemento surpresa medonho, o que ninguém sabe de onde vem nem do que é capaz. Falam no tempo e espaço fantástico da série “Senhor dos Anéis”, da fantasia medieval “Game of Thrones”, do terror apocalíptico “The walking dead” e dos episódios kitsch da “Saga Crepúsculo”. E o cenário tranquilo da fazenda Manchete vai ganhando contornos cinematográficos com suas árvores contorcidas, sombreados temerosos e feixes de luz esvoaçante.
Das minhas referências infantis de seriado de capa e espada observo o arrastar das palhas de carnaúba, com as quais também fazíamos cavalinhos com cabresto de embira, e vejo nelas o potencial dos sabres de luz de “Star Wars”, de George Lucas. Mostro ao Lucas e ao Artur os filetes que podem ser retirados ao longo da haste e conto que com estas varetas montávamos a armação para a fixação do papel para fazer arraia (pipa) e empinar ao vento, num outro tipo de guerra nas estrelas. Essas varetas serviam também para fazer gaiolas, uma espécie de cela da “estrela da morte”, onde muitos meninos costumavam aprisionar aves, situação que sempre me incomodou; tanto que por muitas vezes eu quebrei essas clausuras para libertar passarinhos.
Contei todas essas coisas a eles sem a preocupação de querer resgatar nada. Não falo do passado com saudade do “meu tempo”, nem para insinuar que “naquele tempo” isso ou aquilo era mais ou melhor do que isso ou aquilo. Falo do que passou como algo que se tornou o que somos. E para isso, sempre que as circunstâncias são favoráveis, procuro fazer uso de atividades lúdicas com os meus filhos, como essa em que fizemos espadas de carnaúba, que podem ser partilhadas entre adulto e criança, netos e avô.
A percepção do brinquedo espada mudou muito ao longo dos anos. As referências dos combates históricos e das telas dos cinemas, tablets, computadores, celulares e televisões também mudaram. Quanto à infância, em situação normal esta continua tratando o brinquedo no campo da fantasia consciente. Acho esse fenômeno maravilhoso. O grande benefício dessa relação com o objeto em estado de ilusão é o próprio processo de construir, combinar, comparar e produzir efeitos de convivência, equilíbrio aos impulsos agressivos e liberdade de assumir um papel que tem significação própria no ato de brincar.
São inúmeras as possibilidades de uso de uma simples haste de palha de carnaúba. A experiência da criação é mágica. Novamente parei para olhar o meu pai, Toinzinho, demonstrando como os meninos poderiam separar o talo e as palhas da haste. Sobre um cepo bem firme, eles seguraram cada peça e foram cortando com a minha ajuda, já que envolvia um facão nessa história toda. O passo seguinte seria preparar as ligas de apoio às mãos. Pegamos uma velha câmara de ar de pneu de carro e, como ela estava suja como nós, fomos tomar banho na “bica do vovô”, um chuveiro com água puxada a bomba, diretamente de um poço profundo.
Na gaveta superior esquerda da máquina de costura da minha mãe, Socorro, ainda tem uma tesoura com a qual eu cortava essas coisas que tiram gume. Foi com ela que, entre um esfregado de bucha de maxixe e a tirada de espinhos presos nos chinelos, fizemos as tiras de borracha para as espadas. Enquanto os filetes secavam, nos enxugamos e partimos para preparar as proteções de mãos. A minha mãe conseguiu duas latas de leite, mas as tampas eram de plástico. Tivemos que cortar o tampo do fundo da lata, cujas bordas cortantes foram bem amassadas com um martelo. Deu certo, com todos os materiais prontos, era a hora de montar as espadas.
Cada um fez dois modelos de espada. O Lucas optou por uma cimitarra, com lâmina curva, e por um bastão de artes marciais; o Artur fez uma katana, a arma branca dos samurais e dos ninjas, também com lâmina ligeiramente curva, e por uma espada de duas mãos, do tipo usado em tempos medievais no enfrentamento dos cavaleiros de armaduras. A aplicação da liga de borracha em cada uma deu o detalhe definidor dessas características. O bastão, por exemplo, tem pontos de suporte nas extremidades e no meio; à medida que a espada de duas mãos foi enrolada de preto em quase metade da sua extensão de um metro. Para diferenciar a sua katana da cimitarra do irmão, o Artur acabou colocando também as tampas de plástico na proteção da mão.
A tarde chegava ao fim e o sol começava a pintar tudo de luz amarelada. O muncunzá salgado, feito com milho, feijão e caldo grosso de nata, já começava a cheirar na panela. Indo para a mesa, a coalhada com rapadura ralada, batata doce com leite e outras iguarias do sertão. Tudo parecia calmo até ouvirmos uns gritos e uns sons de pulo no terreiro da frente da casa. Corremos todos para o alpendre e estava lá o meu filho Artur de dez anos lutando de espadas com o meu pai de noventa anos. Plact! Tec! Ai! Ui! Ai! Ambos só de calção e cheios marcas avermelhadas pelo corpo. Foi a prévia do Artur, antes de desafiar o Lucas, seu irmão mais velho, com o qual passou a travar vários combates que duraram até o cair da noite.