Com sensores presos ao pescoço e ligados a caixas de som, vestido preto, cabelo em linha reta, como se estivesse sob efeito de eletricidade estática, e uma ambientação de luz vermelha no hall do teatro Carlos Câmara, a atriz, compositora e cantora Marta Aurélia inicia o ritual performático Guttur, sua nova experimentação artística.
Em sons que não chegam à boca, sons de glote, de pregas vocais, da vibração asfixiada por tudo que anda preso na garganta de uma sociedade refém dos traidores da política e do egoísmo social, Marta convida o público à ancestralidade, ao estado mais primitivo da angústia no desviver.
Em seguida, dirige-se ao palco principal, onde uma atmosfera sombria troca de cor com seu vestido vermelho, e os sons guturais do momento anterior passam a ser reproduzidos por guitarra, teclado, sanfona e clarinete. Os músicos Ayrton Pessoa, Eric Barbosa e Eduardo Escarpinelli juntam-se à performer em seu perigo de não poder dizer.
Enquanto apaga-se pelo país a noção de justiça e a de direito se esvai, um ruidoso discurso interno teima em dizer que sua agonia é coletiva. O espectro da grande tragédia da desesperança extrai a energia do corpo e precariza a mente. Mas ninguém desaparece enquanto existir o outro, como nas trocas que a artista faz com a participação do ator Robson Levy.
Estive sábado passado (20) no Teatro Carlos Câmara, em Fortaleza, para me integrar aos que procuraram vivenciar esse espetáculo substantivo, no qual o ser, muitas vezes sem lugar, sem amar, entra em colisão com um tempo de realidade carcomida pela desfaçatez e morte de expectativas.
A estética da dor lancinante de Guttur me levou a outros sons, como a “Valsa da dor”, música de Heitor Villa-Lobos, na forma em que ela integra o álbum ConSertão (1982), de Elomar, Paulo Moura, Heraldo do Monte e Arthur Moreira Lima. Nessa obra, cada instrumento mexe com beleza no que mais dói em nosso ser. Dá pontadas no nosso eu profundo, no eu animal, espiritual, simbólico, existencial, imaginativo.
Senti também “A Minha dor”, de Edvaldo Santana, faixa do disco Reserva de Alegria (2006), que nos leva sensivelmente ao doloroso mundo das marginalidades involuntárias, a dor lá de baixo, franzina, que não se engana, que sonhou e só sonhou, a mesma dor que anda pelas mesas onde sentam os inocentes. Os pedaços de sujeira sonora me trouxeram a poética cortante de Juçara Marçal na intimidade essencial e constritiva do seu álbum “Encarnado”.
E é por meio de sons contorcidos que Marta Aurélia chega ao momento mais pungente da sua apresentação, ao deixar escapar um canto pelos que desapareceram nos campos de concentração de flagelados da seca: “Meu choro / não alcança sua esqualidez / não alcança sua fome / não alcança a sua escravidão / não alcança sua palidez / não alcança seu isolamento / não alcança sua resignação / não alcança”.
A força poética desse mal estar trôpego sofisticadamente interpretado por Marta Aurélia abala sensações, sentimentos e emoções de quem a assiste deixando escapar palavras aflitivas: “Nada que eu diga ou cale / nada que a memória me leve / levará até você qualquer acalanto”. Falta-lhe força, faltam-lhe meios: “Se eu canto agora / é que jaz em mim / sua morte // Meu choro não alcança / a sua morte”. Que viva a arte!