Estocolmo é tudo de bom!
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 02 de Agosto de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Estocolmo tem oito séculos e é uma cidade que surpreende por estar à frente do nosso tempo. É uma cidade com admirável cultura urbana, na relação com o verde, no sistema integrado de transporte público e serviços de barco, no design, no lazer e até no tratamento novo que dá à sua Cidade Velha (Gamla Stan). As 14 ilhas interligadas por pontes, que formam o seu território, tornaram-se tão orgânicas ao longo do tempo que a cidade parece flutuar como se fosse formada por uma rede de folhas de plantas aquáticas.
A leste, espalha-se entre as águas do mar Báltico e, a oeste, distribui-se harmoniosamente pelas águas do lago Mälaren. Percebi bem essa relação estruturada com a água, na quinta-feira passada (26) ao fazer um passeio de barco, cruzando as pontes por baixo e passando por uma eclusa, construída para facilitar o tráfego de barcos no desnível entre as águas do mar e do lago. Mesmo já tendo circulado separadamente pelas ilhas, de dentro dos canais deu para apreciar melhor a beleza do conjunto ajardinado, com arquitetura diversificada e encantadora, as altas torres das igrejas e os balões coloridos no céu.
Durante a semana fui acumulando uma série de experiências, próprias de quem está em um lugar diferenciado em muitos e muitos aspectos. Muita água, muito verde, canais e parques, pontes e praças. Nas ruas, a servidora pública sai do carro para aguar e cuidar das flores; de outro carro de apoio, um rapaz desce para fazer a reposição de bicicletas de aluguel; nas paradas dos trens, funcionárias uniformizadas ajudam pessoas com dificuldade de locomoção. Isso, sem contar que os transportes coletivos têm batente de acesso no mesmo nível da calçada.
Embora com placas e letreiros somente em sueco (o que vejo com bons olhos), Estocolmo é tão bem sinalizada que dá para circular sem problemas pela cidade. Estávamos em um grupo de seis: além de mim, da Andréa e dos nossos filhos, Lucas e Artur, viajamos também com o meu sobrinho Pedro, que mora na Alemanha, e a sua namorada Vanessa, com quem vive em Colônia (Köln). Ao chegarmos no aeroporto Arlanda, adquirimos um passe para usar o sistema de transporte coletivo e somos todos testemunhas da sua eficácia.
Assim, pudemos ir e vir livre e agilmente pelas ilhas da cidade. Sem contar que andamos muito à pé. É incrível caminhar pelas ruas de Estocolmo; cada quadra que se descortina tem uma composição visual diferente; cada qual a mais bela. E o impressionante em tudo isso é que, mesmo com tanta diversidade, o lugar mantém uma formidável unidade urbanística. Há em Estocolmo uma invejável cultura de respeito ao que é comum; os transportes coletivos respeitam os automóveis, que respeitam as bicicletas, que respeitam o pedestre… e todos respeitam as normas de trânsito.
O respeito à criança também chama a atenção. Em toda a cidade há lugar para a cultura da infância, para o brincar e para a brincadeira. Alguns são prioritariamente dedicados a isso, como é o caso do Junibacken, um ambiente lúdico e literário, que tem como tema central a obra da escritora sueca Astrid Lindgren (1907 – 2002). As crianças usufruem integralmente desse espaço, entrando literalmente em uma história e saindo em outra. A viagem no trem dos contos de Lindgren é fantástica, com sua caracterização de relatos em narrativa lenta, subindo e descendo suavemente, num encontro com personagens e cenários da imaginação.
O Junibacken fica na ilha Djugarden, que é uma agradável e diversificada zona de lazer. O sentido pleno de parque aplica-se muito bem a esse lugar onde a memória e a história misturam-se ao verde na preservação da convivência comunitária sadia. Logo que descemos do trem deparamo-nos com um dos monumentos da cidade, que é o prédio do Museu da Cultura Nórdica (Nordiska Museet). São vários andares de encontro magistral com a forma de viver das tribos, sua indumentária, seu canto, enfim, com a cultura popular nórdica. Tudo com o apoio de um sistema de guia eletrônico, conduzido e controlado pelo visitante.
Não é minha intenção sair aqui descrevendo museus dessa ilha, mas não posso deixar de mencionar o Museu Vasa (Vasamuseet), pelo que ele significa para a compreensão da própria Suécia. É o museu de um barco de guerra, com 68 metros e 32 canhões de cada lado, que afundou em 1628, na ocasião da sua viagem inaugural, devido a seu peso excessivo e à sua altura desproporcional. Resgatado mais de trezentos anos depois, esse barco deixa qualquer um perplexo por ser uma joia gigante de madeira, um tesouro artístico e bélico, construído com a finalidade de ostentar o poder do rei Gustav Vasa, fundador das bases do estado nacional sueco.
A demonstração desse poder estava na força dos canhões e na qualidade artística das esculturas que adornam a embarcação, em pinturas que vão do dourado ao vermelho, passando pelo verde, amarelo, azul e violeta. O barco, que vimos em cada parte dos seus mais de cinquenta metros de altura, foi apresentado como uma máquina de guerra e uma obra de arte. Vasa iniciou seu reinado em 1523 e ao morrer, em 1560, deixou uma dinastia que durou mais de um século no poder. É uma figura emblemática, cuja síntese pode ser simbolizada nessa relíquia que leva o seu nome e que se encontra exposta desde 1990.
Das sabedorias do povo sueco, uma que também encontramos em Estocolmo está organizada no Skansen, o museu ao ar livre mais antigo do mundo (1891), com 300 hectares de área urbana. Com o início da era industrial os suecos tiveram a feliz ideia de documentar a vida da sociedade camponesa; casas, granjas, oficinas, igrejas, mercados e moinhos de vento, incluindo zoológico com animais nórdicos (ursos, alces, renas, focas etc). São mais de 150 edificações transplantadas ou construídas, que funcionam normalmente nesse espaço com “moradores” que se vestem e atuam como um testemunho vivo do seu passado.
No dia que fomos à ilha Skeppsholmen, concentramos nossa experienciação na caminhada pelo parque e na visita a dois museus. No Museu da Arquitetura (Arkitekturmuseet) vimos maquetes de diversas épocas e lugares do mundo e alguns comparativos em recortes específicos de tempo, como é o caso da arquitetura no Peru e no Cambodja, no início do segundo milênio. No Museu de Arte Moderna (Moderna Museet) curtimos salas e salas de obras instigantes, sobretudo aquelas relacionadas aos artistas participantes da mostra intitulada “Explosão”, onde a pintura é tratada como ação, e a instalação “Grapefruits”, de Yoko Ono, inspirada no seu livro homônimo, de desenhos e instruções para a vida e para a arte.
Estávamos cruzando a praça Real e nos deparamos com um show realizado por um movimento musical chamado “Lilith*Eve”, que reúne mais de quinze compositoras e cantoras da Suécia. Pegada boa a dessa gente, inspirada na relação de Lilith e Eva com Adão, e movida a rock tradicional sueco, baladas dramáticas, pop existencial, jazz, blues, sons bem-humorados e reflexivos, poesia, música performática e canções de metrô.
O que me intriga nessa riqueza cultural e ambiental de Estocolmo é a sensação de que a cidade chegou ao futuro, com aproximadamente um milhão de habitantes, ótima gastronomia de frutos do mar, uma beleza arquitetônica impressionante e uma vida social marcada pela qualidade dos serviços públicos, em um país com território ocupado por florestas e lagos. E pensar que há menos de dois séculos a Suécia era um dos lugares considerados mais pobres da Europa. Parece que deu certo. É possível. Estocolmo é tudo de bom.