Eugênio Matos e o som encenado
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.5
Quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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O mundo da música, sobretudo o da indústria brasileira do audiovisual, ganha um livro de referência para o seu desenvolvimento. Com “A arte de compor música para o cinema”, (Senac, DF, 2014), o músico, compositor e arranjador cearense Eugênio Matos oferece sua expertise no assunto a profissionais e estudantes de cinema, vídeo e jogos eletrônicos, em publicação com didática agradável e eficiente.

Na fala que fez por ocasião do lançamento em Fortaleza (dia 22/01, na livraria Cultura), Eugênio frisou a trilha musical como um dos quatro depositários de direitos autorais na simbiose de linguagens de uma obra cinematográfica, ao lado da direção, do roteiro e da fotografia. É, portanto, uma atividade relevante no campo crescente da economia criativa.

A cobrança de direitos musicais tem sido uma das salvações da velha indústria fonográfica. Nem sempre dá para contar com grifes consagradas nas trilhas de filmes, vídeos e games; o que tem levado muitos produtores a optar pela contratação de criadores de trilhas originais.

Compor para a encenação do som requer um bom entendimento desse quebra-cabeça musical de sofisticação literária. O autor precisa saber oferecer referências de tramas comuns e de enredos pouco usuais para dramas familiares, festas, aventuras, suspense, crônicas amorosas, terror e dilemas morais, entre tantas emoções, sentimentos, expectativas, lembranças e impressões.

Um gesto, uma expressão facial, os humores das cenas, o tempo da ação, tudo tem destaque especial na música, em suas fontes de som e de silêncio. No cinema, ela ajuda a contar histórias; nos videogames, contribui para abrir histórias à participação direta dos jogadores na ação. Como o “espectAtor” do teatro de Augusto Boal (1931 – 2009), a plateia do audiovisual caminha para experiências cada vez mais pessoais, nas quais a música é essencial.

Por sugerir táticas, técnicas, estéticas e tendências do uso de trilhas musicais, o livro de Eugênio Matos é uma excelente ferramenta para a nossa arte cinematográfica, considerando que o Brasil tem grandes e habilidosos músicos que podem dar melhor suporte sonoro dramático a filmes, vídeos e jogos eletrônicos. “A arte de compor música para o cinema” é uma obra especular, que reflete, com qualidade e esmero, o virtuosismo e a experiência do seu autor.

Eugênio Matos começou sua relação com os instrumentos tocando intuitivamente, integrando grupos musicais e fazendo trabalhos solo, até desenvolver conhecimentos acadêmicos, com aperfeiçoamento das técnicas para criação de trilhas musicais ao se tornar mestre em composição para cinema pela Universidade da Califórnia (UCLA). O ponto comum dessa trajetória é a presença constante de um pensamento estético refinado.

É um artista amadurecido que não perdeu o frescor da inquietação inventiva e sua musicalidade transbordante. Lembro-me quando ele, na década de 1980, liderou um grupo de músicos que produziu um dos trabalhos mais inovadores e consistentes da música instrumental no Ceará. Com a Banda Officina musicou e montou o espetáculo “Iracema Instrumental”, com arranjos experimentais e progressivos integrados à obra literária de José de Alencar (1829 – 1887).

Como compositor, maestro, arranjador e músico, Eugênio Matos tem participado de filmes de formatos e temáticas distintos e produzido trilhas para vídeos institucionais e corporativos. Com o intuito de compartilhar descobertas, criou e ministra o curso “Música para cinema e tv”, como parte do Curso Internacional de Verão da Escola de Música de Brasília.

Nas páginas de “A arte de compor música para o cinema” o leitor pode encontrar desde aspectos da história da música para o cinema até questões burocráticas. E, ainda, uma filmografia recomendada, dicas de portais com legislações específicas, publicações especializadas, entidades de compositores, contatos de autores de trilhas, centros de ensino e pesquisa, tecnologias disponíveis, instrumentos virtuais e fabricantes.

Ao lado de ilustrações com criações do próprio autor e de análises de filmes e suas trilhas, o livro sugere experiências como a de ver o filme sem ouvir a música, caso o leitor queira sentir o que sente o compositor diante da encomenda para fazer uma trilha. “As mídias digitais possibilitam isso, é só silenciar os diálogos e o som ambiente, deixando apenas a música”(p.97). O inverso também é de bom aprendizado: ouvir a música sem assistir o filme. “Ajuda a dissecar os elementos musicais e interpretá-los em termos de possibilidades de conteúdo dramático” (p.98).

O som encenado, visual e táctil, anda lado a lado com a luz, com os movimentos dos personagens, com o tom da história, o momento da ação e as reentrâncias do cenário. “Diferentemente das histórias contadas com palavras, a trama desenvolvida pela música atinge o inconsciente de forma direta, sem a intermediação dos recursos da tradição oral e literária” (p.17), afirma Eugênio, com seu fascínio pela transmissão de impressões e sensações usando as forças misteriosas e indescritíveis dos sons.