Evo e a Bolívia plurinacional
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 15 de outubro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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A festa democrática boliviana do domingo passado (12) confirmou nas urnas o terceiro mandato consecutivo do presidente Evo Morales, que vai até 2020. As imagens coloridas das lufa-lufas das gentes pelas ruas e pelas estradas do país, com mulheres de chapéu-coco carregando bebês a tiracolo, revelam a vontade massiva da população de seguir influindo nos destinos do país.

O êxito eleitoral de Evo Morales, líder andino considerado o primeiro mandatário americano genuinamente indígena, deve-se à sua determinação de tratar a vida econômica do país como parte da política e não apenas do comércio, ao seu modo de promover inovações administrativas com as quais as receitas superam as despesas no orçamento público, e à vontade da população de ter um representante da maioria no poder executivo.

Morales aboliu do país o receituário do Fundo Monetário Internacional (FMI), expulsou o embaixador estadunidense do país (2008), estatizou os setores-chave da economia, tais como petróleo, eletricidade e telecomunicações, deixando o capital privado atuar nos demais mercados. Com isso, conseguiu melhorar as condições de vida da população e desenvolver políticas de inserção social, educacional e econômica. A Bolívia reduziu a pobreza extrema de 38% para 18%, com redução do desemprego de 5,3% para 3,2%.

Depois de enfrentar movimentos de secessão, que ameaçavam separar formalmente a Bolívia em dois países, um de ricos e outro de pobres, Evo Morales conseguiu evitar a autonomia política da região de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija, principal centro econômico do país, mesmo acusado de assistencialista e de populista pelos setores conservadores. Com esse terceiro mandato, Evo Morales, que fará 55 anos no próximo dia 26, firma a sua liderança em todo o território boliviano e passa a ser o presidente com mais tempo no poder, o que significa uma estabilidade democrática que nunca houve na história do país, marcada por golpes e mais golpes militares.

É curioso saber que o fenômeno Evo Morales tem sua grande força em circunstâncias notadamente simples. No livro “Mi vida – De Orinoca al Palacio Quemado” (Sagitario, 2014), no qual ele relata ao jornalista Iván Canelas Alurralde sua história desde a infância até o dia em que assumiu a presidência da Bolívia em 22 de janeiro de 2006, há algumas pistas da fonte da sua consciência social, ambiental e política.

Educado no campo, na labuta, pastoreando ovelhas e lhamas, ajudando os pais nos trabalhos domésticos e na agricultura, Evo Morales passou a infância na vida comunitária dos Ayllus, terras coletivas do altiplano, onde vigora um conceito de estrutura social anterior ao império incaico (século XV e início do XVI). Para ele, a terra é Pachamama, aquela que cuida, que alimenta, que dá a vida. Na escola de Orinoca, onde começou a estudar, todos os alunos plantavam árvores e tinham a obrigação de regá-las e podá-las.

A história de Evo Morales confunde-se com a história marginal da Bolívia. Sua mãe, María, era analfabeta, mas rezava em castelhano. Até a década de 1940 era proibido aprender a ler na zona rural onde ele nasceu. Seu pai, Dionísio, viajava para trabalhar em safras de produtos de outras regiões. Dessas viagens, um dia chegou em casa com um rádio, através do qual Evo tomou conhecimento do golpe militar de 1971, um dos mais sangrentos do país.

Evo desenvolveu o gosto pela música e por futebol. Tocou na banda de Orinoca e, quando se mudou para estudar em Oruro, trabalhou como padeiro, mas seu primeiro contrato de trabalho foi como trompetista. Chegou a gravar em dois discos. Em 1978, deixou a música de lado para prestar serviço militar. No quartel descobriu que o exército era muitas vezes usado para combater os próprios bolivianos. Na sua experiência como soldado, Evo Morales observou de perto como o Estado Maior tinha poder para mudar presidentes.

Voltou a trabalhar no campo e, com a cabeça mais apurada para os problemas sociais e políticos, começou a perceber a situação crítica dos agricultores, sobretudo dos plantadores de coca, ante as pressões comerciais dos Estados Unidos: “Te imaginas en el mundo cuánta Coca Cola se consome, el origen de este produto es la hoja de coca, igual que para el vino Mariane” (p. 126). Entrou para a luta sindical e assumiu seu primeiro cargo político em 1981, quando aceitou ser secretário de esportes do sindicato de cocaleros de Chapare.

Ele foi aguçando a percepção da política, ao ver as empresas públicas bolivianas serem vendidas a qualquer preço, e foi se dando conta de que, diante do abandono das pessoas mais pobres por parte dos políticos, eram os sindicatos que acabavam fazendo o papel do Estado: “Son los sindicatos, las organizaciones naturales, los ayllus que construyen escuelas, postas sanitárias, campos desportivos y hasta abren caminos” (p. 150). Indignado com essas constatações, resolveu entrar para a política, tendo sido deputado antes de se eleger presidente e de transformar constitucionalmente (2009) a Bolívia de Estado colonial para Estado plurinacional.