Falcão arrepia na Casa Alheia
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 26 de Abril de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Logo que comprei o novo CD do Falcão, intitulado What porra is that? (Que porra é essa?) veio-me uma agradável associação dessa sátira ao português “fast-fooderoso” da atualidade com a obra de português “macarrônico” de Juó Bananére (1892 – 1933), da São Paulo de um século atrás. Com o novo disco, o brega-star cearense, que já tinha feito paródias de músicas de Waldick Soriano (Eu Não Sou Cachorro Não / I’m not dog no), e de Atílio Versuti / Jeca Mineiro, (Fuscão Preto / Black People Car), sofistica essa versão burlesca, mesclando português e inglês nas composições Pato Donald no Tucupi (Falcão e Tarcísio Matos), Severina Cooper / It’s not mole não (Acioly Neto) e Amanhã será Tomorrow (Falcão), satirizando, assim, a invasão léxica mais recente no multilíngüe idioma brasileiro.
Lembrei de Bananére pelo estilo literário bem humorado que ele criou, misturando português com italiano para dar relevo cômico ao linguajar dos imigrantes acolhidos no Brasil da sua época. Juó Bananére desenvolveu uma literatura que reunia as falas de rua praticadas em bairros como o Brás, Bom Retiro e Casa Verde, na capital paulista. Em condicionante histórica bem distinta, Falcão utiliza-se dos elementos da nossa aculturação anglo-saxônica para inspirar sua música irreverente.
As conexões entre Falcão e Bananére se dão por muitas vias. Ambos eram Marcondes. Juó Bananére é pseudônimo de Alexandre R. Marcondes Machado e Falcão foi registrado como Marcondes Falcão Maia. Tinham profissões afins, um era engenheiro e o outro é arquiteto, embora ambos tenham alcançado destaque no campo estético do sarcasmo; Bananére como literato e Falcão como artista. Tratam-se de meras curiosidades que só merecem destaque por conta da parecença de linguajares que eles produziram, guardadas as devidas variantes textuais.
Por circunstâncias adaptativas ou por descuido político e desprezo cultural, a amálgama linguareira que aproxima os dois guarda o jeito de cada um.
Na faixa que dá nome ao CD What porra is this? (NC Music, 2007), Falcão canta, da parceria com Tarcísio Matos: “Vinha virando a esquina da Don’t Walk com a One Way / Um guarda gritou: – Stop! Eu estoporei / Naquele momento a lua surgia redonda como um tamanco / no céu da Broadway” (Pato Donald no tucupi, faixa 1). No livro La Divina Increnca (Ed. Falco Masucci, 1966), Bananére escreve: “Ficas n’um ganto da sala / p’ra fingi chi non mi vê, / E io no ôtro ganto / Stô fingino tambê. / Ma vucê di veiz in veiz / Me dá uma brutta spiada, / e io tambê ti spio / Ma finjo chi non vi nada” (Versos, p. 57).
Como o trabalho do Falcão é melhor ao vivo do que em gravação, fui ver o show que ele fez na sexta-feira passada no bar Buono Amici’s, dentro do bem-sacado projeto Farra na Casa Alheia, coordenado pelo agitador cultural Franciscus Galba. Ele compareceu com o melhor do seu repertório. A casa estava com os dois pisos lotados por um público de faixa etária média de 20 a 25 anos, em evidente necessidade de catarse. Por quase duas horas de espetáculo, essa platéia participativa deu gargalhadas, dançou, gritou, lembrou de si mesma, desabafou e sentiu graça na folia, como fator de libertação e integração.
Falcão sabe como ninguém instigar a quebra da rigidez da aparência. E isso é muito do que seus fãs desejam. O escracho praticado com inteligência dá uma sensação de desrespeito reverso de efeito moral purificador. Ele fustiga pontos de descontentamento ao que está à volta de cada um e de todos. Esse exercício revela-se claramente eficaz quando Falcão inflama a platéia a mandar à “pqp” alguns deputados e senadores que envergonham a política brasileira. Ele evoca o nome do parlamentar e a galera reage de pronto: “Vá pra puta-que-pariu!”. E repete, repete e repete, em uma verdadeira terapia coletiva de purgação.
Com What Porra is That? Falcão retoma a sátira bem resolvida que lhe deu vida artística profissional, há 16 anos, quando lançou pela gravadora Continental o LP (long-play) Lindo, Bonito e Joiado. Por ocasião do show da Farra na Casa Alheia apareceu na platéia uma capa desse elepê, como uma bandeira de religação entre duas gerações universitárias de falconetes, como ele denomina seus fãs de todos os gêneros. A autêntica arte enviesada de Falcão tinha passado cinco anos fora dos palcos cearenses. Esse sumiço teve influência natural dos altos e baixos, das idas e vindas, das carreiras artísticas, mas teve também uma enigmática mudança de rota, que felizmente já foi corrigida.
A explicação alegórica para esse distanciamento indesejado passa pela ação do encosto de energia negativa do Dinossauro Raimundo, um tipo de déspota vivo-morto, solitário e egoísta, que soprava e abanava os sonhos de sucesso do Falcão rumo ao enfileiramento palaciano, enquanto, por outro lado, o levava a perder sangue na capilaridade irrigadora da sua verve com o espírito de desacato da juventude. Reza a lenda que tudo isso não passou de uma vingança ao fato de, no passado, Falcão ter ironicamente ousado dedicar a essa ignóbil criatura uma música intitulada Os Desgostos que tua Mãe me deu. Parece que houve descarrego. Há quem acredite e quem não acredite nessas histórias.
O importante é que o Falcão está curado e corado. Provou isso no show da Farra na Casa Alheia, acompanhado por Denílson Lopes, Alves, Luciano e por outro Tarcísio, que, como o letrista Tarcísio Matos, faz parte das células-tronco do Falcão, que é o também inadjetivável Tarcísio Sardinha, o músico. Na festa de lançamento de What Porra is This? Falcão juntou as pontas de si mesmo, com uma compilação que foi da antológica Oportunidade Única (Falcão / T. Matos) à oportuna A Sociedade não Pode Viver sem as Pessoas (Falcão), explorando o que tem de mais expressivo na sua inata e talentosa habilidade de fazer rir e de provocar catarse através da música e do humor.
Falcão tem a força dos criadores genuínos. Faz música como quem faz um cartum, um teatro brincalhão ou um verso satírico. Tem limitações como instrumentista e como cantor, mas é um artista completo na sua variação humoral. O intérprete baiano Xangai falou certa feita em uma das edições do programa Literato, do Centro Cultural do Banco do Nordeste, da diferença entre os artistas que podem e os que não podem ser clonados. E citou o Falcão no grupo dos não replicáveis. Seu argumento chamava a atenção para o valor da originalidade em um cenário mercadológico marcado pela facilidade da cópia.
O cômico na performance de Falcão está na influência psicológica da realidade sobre a predisposição do seu público. Ele não é um piadista de salão. Não conta nem faz piadas no palco. Falcão é um ato falho absoluto, que se revela acionando os mecanismos cerebrais de humor de quem o assiste. Não precisa de escadas para a provocação e aprovação da sua graça. Seu show não tem clímax. Ao longo da apresentação ele faz sadias marmotas eróticas, usa bem a palavra esculhambada e interage desarmado com a platéia. As pessoas vão às graças, urros, danças e assobios descontraídos. Uma algaravia confirmadora de que rir e cantar ainda são diferenciais do animal humano a serem cultivados.