Família e consumo no cubo de Rubik
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quintas-feiras, 20 e 27 de Setembro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Parte I, 20 de setembro de 2012

Todo mundo conhece o popular “cubo mágico”, aquele quebra-cabeça colorido e tridimensional. O nome de batismo dele é Cubo de Rubik porque foi inventado por Ernö Rubik, um professor de design da Academia de Artes de Budapeste (Hungria). Como todo cubo, o de Rubik tem seis lados e, na sua versão mais comum, cada lado é dividido em nove peças articuladas (3x3x3), que podem ser giradas livremente, criando diversas possibilidades de configurações em cada um dos lados, desde o agrupamento em peças com variadas cores até a composição com todas as cores iguais.

Tomei a figura desse brinquedo como uma metáfora da educação para o consumo, do ponto de vista da intervenção familiar. Cada lado do cubo representa, nessa minha ilustração, uma instância de relacionamento da família nas suas práticas parentais educativas: o mundo escolar, o das mídias, o social físico, o social virtual e o da espiritualidade. O eixo “mágico” que permite o entrelaçamento desses seis mundos no cubo da educação é a cultura. E assim, o bloco inteiro pode ser movimentado, ora na vertical, ao dizer “não”, e ora na horizontal, quando diz “sim”.

Educar para o consumo é criar condições para o entendimento e a convivência crítica com as “verdades” efêmeras, comuns em uma sociedade contagiada pelo consumismo e suas falsas ofertas de ideal de felicidade. Como quem busca encontrar novas combinações de cores no “Cubo de Rubik”, organizei alguns exemplos de como a função simbólica e orientadora da família pode contribuir para contornar essa situação causadora de tantos problemas físicos e psíquicos no mundo contemporâneo, e os inclui na palestra “A Família na Educação para o Consumo” (26/09/2012 às 19:30), para pais da Educação Infantil e do Ensino Médio do Colégio Santa Cecília, em Fortaleza.

Em que pese a negligência social com relação à vulnerabilidade da função estruturante da família no seu processo de adaptação e de reinvenção de laços afetivos, não podemos esquecer que cerca de 70% dos lares brasileiros têm filhos, sendo, em números redondos, 50% de casais e 20% de famílias monoparentais. Sem contar que o levantamento dos “Arranjos Familiares Residenciais” (Censo Demográfico do IBGE – 2010) não contempla filhos que vivem na condição de guarda compartilhada. A expressividade desses percentuais confere destaque especial ao papel da família (na configuração que for) no bloco de articulações educativas para a vida em sociedade.

A situação da família é muito delicada. Não é fácil lidar com a pressão consumista que chega a todo momento, de todas as formas e de todos os lados: o clipe de meninas de avental e peruca rosa, imitando as “empreguetes” da novela “Cheias de Charme” (TV Globo) teve mais de dez milhões de acessos no YouTube; como se não bastasse o comércio de sutiãs com enchimento, lingerie, sapato alto, blush, batom, brilho labial e esmalte para crianças, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) está com uma consulta pública aberta para liberar a venda de sombras infantis; e o palhaço do McDonalds continua solto, fazendo apresentações “gratuitas” em creches, escolas, orfanatos e hospitais, com “mensagens educativas”, enquanto o Ministério da Saúde e a Fenep (Federação Nacional das Escolas Particulares) começa a distribuir uma cartilha estimulando a venda de alimentos saudáveis nas cantinas escolares.

Esses exemplos caracterizam bem as dissonâncias cognitivas que precisam ser trabalhadas por mães, pais e cuidadores em um cenário de pulsões desejantes indefinidas e de encantos insaciáveis, que levam à ansiedade, à agressividade e à depressão. A contribuição da família na realização do equilíbrio emocional e social das crianças e dos adolescentes passa pela compreensão do motivo que leva as pessoas a terem filhos, pela aceitação de que eles precisam ser embalados, acariciados e estimulados a amar o mundo em suas contradições, e por ações que deem materialidade à razão de ser familiar.

Cada família tem o seu próprio jeito de refletir e de lidar com essas questões. A troca de experiências torna-se, portanto, fundamental à reconstrução do valor simbólico da vida familiar no mundo do consumo. Deste modo, tomo a liberdade de contar um pouco de como lancei mão das nove peças que formam as cores do lado da família na analogia que fiz com o “Cubo de Rubik”, para desenvolver métodos de sentidos e sentimentos, porque acho que as noções de bússola e de sensibilidade são mais eficazes do que a racionalidade na educação para o enfrentamento do consumismo. As nove peças que simbolizam essa pedagogia familiar empírica não se baseiam na renúncia ao prazer e, sim, na fuga das obrigações de usufruir o desnecessário.

Peça 1: Pedagogia do ACOLHIMENTO – Como primeiro exercício de educação para o consumo, procuramos não seguir as caracterizações tradicionalmente indicadas para quarto de bebê. Embora com todos os toques de preparação de um cantinho para quem é esperado, nossos dois filhos não chegaram apenas em um quarto, mas em um lar, com cores e decorações próprias e integradas. Para cada um, compus dez músicas infantis e eles nasceram ouvindo esse repertório em primeira mão. E criamos a sigla F.A.L.A. (Flávio, Andréa, Lucas e Artur), como uma forma bem particular de nos reconhecermos numa unidade de diálogo.

Peça 2: Pedagogia dos JOGOS – O oferecimento de várias opções de modalidades de esportes, sem cobrança de desempenho, tem sido um dos nossos esforços para estimular o gosto pela atividade física e para combater a tendência de reclusão forçada pela atração das telas. Chegamos a inventar um “Futebol de Sala”, de um contra dois. Quando eles cresceram mais, passamos a frequentar o estádio, indo tanto para jogos do Fortaleza quanto do Ceará, a fim de que eles decidissem o time de suas preferências. Com a opção dos dois pelo alvinegro, a experienciação do ato de torcer e da psicologia da multidão ganhou regularidade e, na arena, eles podem dizer palavrões e comer todo tipo de alimento que se vende em estádio. Sou também coadjuvante no videogame e em jogos de tabuleiro, como o Monopoly, em que a F.A.L.A. se junta aos amigos deles para uma diversão que dá a oportunidade de sentir e refletir sobre a perversidade da riqueza concentrada.

Peça 3: Pedagogia da NARRATIVA – A descoberta do hábito de leitura começa em casa, com a intimidade do contato com livros de pano, livro de plástico para ler no banheiro e com a regularidade da leitura na hora de dormir. Histórias para sentir sempre são mais interessantes do que para entender. O que a criança precisa perceber é que a vida é uma grande narrativa e que a narrativa é parte indissociável do humano. Quando leio para os meus filhos ou quando vejo que eles notam que seus livros estão nas principais prateleiras da sala, a sensação que tenho é que tudo isso sugere significado e direção, fascínio pelo cotidiano e grandeza pela vida. Quando a interpretação do mundo nasce de dentro de nós, de dentro da nossa cultura, estamos supostamente mais preparados para discernir a fabulação da publicidade e da propaganda em nossas vidas. (Continua na próxima quinta-feira, dia 27/09/2012).

Parte II, 27 de setembro de 2012

Peça 4: Pedagogia da ARTE – Um dos pontos que tornam as crianças mais frágeis diante do ataque da publicidade é a falta de chance da experiência estética. As alternativas ao lixo da massificação dependem de um esforço extra da família para serem acessadas, adquiridas e assimiladas pelos filhos. Em um mundo onde a criatividade e a inovação ganham dimensões estratégicas sociais e econômicas, a precariedade dos parâmetros estéticos é um limitante do desenvolvimento individual e coletivo. Um dos recursos que funcionam muito bem com os nossos filhos é o da escolha separada para a curtição conjunta. Isso vale para literatura, cinema e música. No som do carro, por exemplo, cada qual escolhe um CD e, em rotatividade consentida, todos escutam a preferência do outro, dando ensejo a uma rica troca de influências.

Peça 5: Pedagogia do LETRAMENTO VIRTUAL – No mundo social virtual é comum a sobrecarga de informações e a constrangedora pressão de consumo de novos equipamentos e aplicativos como obrigação social. A vivência excessiva nesse mundo tende a ampliar a agilidade mental e a aumentar a capacidade de processamento de informações no cérebro do usuário, mas, além de produzir efeitos bioquímicos semelhantes aos das drogas, reduz o nível de empatia, afeta a memória de longo prazo e compromete a formação da consciência. Na tentativa de aproveitar o máximo das maravilhas da evolução da internet e das tecnologias digitais, criamos em nossa casa duas regras básicas: 1) não devemos expor nos logradouros públicos e nas áreas privadas do cyberespaço o que não estivermos confortáveis em mostrar na realidade física; 2) assim como no mundo social físico, a vida virtual tem anonimato relativo e precisa de experiências subjetivas que só podem ser desenvolvidas com tempo para o ócio e para o devaneio.

Peça 6: Pedagogia da OFICINA – A maneira mais contundente que encontramos para dizer aos nossos filhos que a vida de estudante deles tem valor de fato, foi criando em casa um mesmo ambiente de produção para adultos e crianças. Assim, montamos um escritório com bancada de quatro estações de trabalho e equalizamos a importância do que fazemos com as tarefas escolares deles. É uma oficina da casa, onde podemos nos ajudar mutuamente nos nossos afazeres. Em muitas circunstâncias, quando estou escrevendo, escuto a voz dos meus filhos dizendo que algo não está claro ou sugerindo que eu troque determinada palavra. E as sugestões deles são sempre consideradas, seja com alterações ou com esclarescimentos. Eles fazem isso com o intuito de contribuir, da mesma forma que a mãe deles e eu temos a liberdade de comentar o que eles fazem, sem qualquer receio de intromissão (Embora, claro, nem sempre sejamos considerados).

Peça 7: Pedagogia da VIAGEM – Esse recurso educativo familiar é um dos meus preferidos. A definição do destino, a arrumação das coisas e a intensificação da convivência por um determinado período é fundamental para ampliarmos o conhecimento um do outro, em zonas de comportamento que no cotidiano não temos a oportunidade de transitar juntos. Procurar novidades a partir de nós, mas estando em outro lugar, é participar um pouco de realidades distintas, sentir como outras pessoas vivem e observar como, por terem outros traços culturais, encontraram soluções diferentes para as mesmas necessidades humanas que temos. Nas nossas viagens sempre priorizamos a fotografia na captura de imagens. Diferentemente da filmadora, a máquina fotográfica facilita o treinamento do olhar; com ela tende-se mais a escolher o objeto a ser fotografado. Depois de cada viagem costumo sentar com o Lucas e o Artur para fazer o jornal “Aventuras”, que está na trigésima edição e completará dez anos em 2013.

Peça 8: Pedagogia da DESCOMPRESSÃO – O patrocínio da “pedocracia”, como o poder da criança acima da autoridade dos pais e dos professores, é uma das mais poderosas táticas da ideologia do consumismo. No “cubo mágico” da educação para o consumo, a atitude de construção de alternativas simbólicas a essa situação prática é um dos movimentos mais difíceis de serem feitos pelo lado da família. Para romper com essa condição de permanente estresse social causado pela busca da felicidade no objeto, a experiência mais bem estruturada que realizamos na infância dos nossos filhos é a Festa do Saci, na qual eles e os amigos podem se divertir em brincadeiras de suspensão da lógica consumista cotidiana, como um exercício imaginativo de desestabilização do estabelecido. Buscamos o alívio da pressão do consumismo também em outras práticas do sentido contrário, tais como o esforço para estarmos juntos na hora das refeições e a priorização do Deus amoroso nas orações antes de dormir.

Peça 9: Pedagogia da EMANCIPAÇÃO – Não há uma única fronteira entre a proteção e a emancipação dos nossos filhos. Na educação familiar para o consumo esse é um ponto crítico que traz em si indagações sobre os limites do cuidado excessivo e da autonomia forçada. Para conduzir essa questão propus na nossa casa a metáfora do ninho e da árvore esgalhada. Da varanda do prédio olhamos para as ruas e avenidas que deu para a vista alcançar e fomos comparando cada via com os galhos das árvores. E fui falando que primeiro eles andariam na rua apenas do mesmo lado da calçada, depois passariam de fase e poderiam atravessar o asfalto; em outro momento mudariam de rua até cruzarem bairros etc. Já tivemos um dia para andar de ônibus e ainda insistimos em circular de bicicleta pela cidade. Esta referência de preparação para o uso da cidade vale para qualquer evolução de liberdade física, moral e intelectual.

Assim como temos nos esforçado para praticar essas pedagogias derivadas da vontade de acertar na criação dos filhos, cada família naturalmente vai inventando seus modos de educar para o consumo. A título de ilustração, defini dez juízos aparentemente lógicos do chamo de falsas verdades do consumismo, instaladas em maior ou menor intensidade no nosso senso comum: 1) a autonomia dispensa liberdade e direito; 2) quem é nativo digital é mais inteligente; 3) o cybermundo prescinde do mundo concreto; 4) para participar basta clicar; 5) para ser feliz na web não precisa ser feliz; 6) o conhecimento é desnecessário para o sucesso; 7) ser bem-sucedido é uma questão de esperteza; 8) não há sucesso sem droga química ou psíquica; 9) a autoajuda dispensa a espiritualidade; e 10) nunca a realidade esteve tão complexa.

As articulações educativas para a vida em sociedade, feitas na dinâmica das nove peças do lado da família no cubo da educação para o consumo, passam diretamente pelas peças do mundo escolar, das mídias, do social físico, do social virtual e da espiritualidade. O êxito de cada giro, de cada acoplamento, de cada combinação de cores está sempre associado ao eixo mágico que permite a consciência e o discernimento mais profundo, que é a cultura. Essas pedagogias são contranarrativas cotidianas com as quais pretendemos aprender a “desaprender”, a informar, formar, “desenformar”, sentir, evocar, encantar e socializar a ideia de que viver é muito mais do que consumir.