A classificação indicativa sugere que a meninas e meninos menores de 14 anos não convém mostrar A Viagem de Fanny (2016), em cartaz no Cinema de Arte, do Cinépolis RioMar, em Fortaleza. Tema sensível, complexo, entre coturnos, ausência dos pais e bichinho de pelúcia, o filme é bem feito em seu movimento de apertar e afrouxar pequeninos corações. Mas em família certamente dá para baixar essa régua etária a algo como uns dez anos.
Situações como a enfrentada pelas crianças nesse drama da diretora francesa Lola Doillon não acontecem somente em tempos declarados de guerra. Em cenas rurais, a obra mostra a natureza contracenando com a irracionalidade humana, em circunstâncias análogas às vividas por muitas meninas e meninos no cotidiano de Fortaleza, Bagui, Aleppo, Nova Orleans, Marselha, Caracas, Tijuana, Osaka ou Osasco.
A atuação das crianças é envolvente, o que torna os sentimentos mais atraentes do que os acontecimentos. O desamparo, a descoberta de perigos constantes e a percepção dos efeitos da intolerância produzem uma liga de amizade, respeito e confiança tecida simultaneamente pela ingenuidade e pela engenhosidade infantil diante do infortúnio.
As histórias de fuga e sobrevivência de crianças interessam naturalmente ao público infantil pelo exercício de identificação que possibilitam. A determinação de escapar por inteligência e intuição próprias, em condições desconhecidas e ameaçadoras, com momentos alternados de alívio e novas ameaças, serve de teste de hipóteses para o enfrentamento de condições adversas, quando o adulto que ama não pode estar próximo.
Tenso e delicado, A Viagem de Fanny tem passagens muito especiais e reveladoras da potência da cultura da infância. Em vários momentos da narrativa a essência infantil vence a dura realidade e eles brincam no riacho, no milharal, na cabana abandonada e até catando cédulas que esvoaçam da bolsa do mais endinheirado deles. Brincam em outro mundo, no campo inviolável e bonito da liberdade imaginativa.
Uma das cenas mais marcantes desse filme é quando um dos garotos chega ao extremo do insuportável e desafia os soldados alemães que os mantêm reclusos e com fome para que revelem suas identidades. Em ato de desespero e dignidade, ele tranca a porta, segura as chaves e, ao ser ameaçado de morte, segura a ponta da arma na cabeça e diz algo como: “Pronto, agora estamos todos presos aqui dentro. Atire em mim”.
As personagens dessa história representam filhos de judeus perseguidos por nazistas durante a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945). A obra é inspirada em relatos do Le Journal de Fanny, livro de memórias de Fanny Ben-Ami, judia-alemã que aos 12 anos se viu compelida pelas circunstâncias a conduzir um grupo de crianças em uma arriscada fuga do território francês.
A família de Fanny tinha se refugiado em Paris, mas com o acordo de colaboração que possibilitou a Alemanha a capturar judeus na França, ela e as duas irmãs mais novas foram enviadas para uma organização que acolhia crianças judias em Creuse, região central do país. Com a ocupação nazista, elas foram orientadas a assumirem nomes franceses e a contarem aos soldados que encontrassem pelo caminho que estavam indo para uma colônia de férias nas montanhas. Essa é a viagem.