A soma dos anos vividos não necessariamente é igual ao calendário que a marca no tempo. Algumas pessoas vivem mais do que os dias, os anos, as décadas e os séculos. Norberto Ferreira Filho, o Ferreirinha, que nasceu em 27/05/1918, cruzou há pouco mais de uma semana o centenário relativo à sua idade, mas, observando-se o tanto que fez nesses anos, ele está certamente a mais de 100.
Trabalhou desde menino ajudando o pai na Padaria Norberto. E trabalhar em padaria sempre foi sinônimo de acordar de madrugada para fazer o pão nosso de cada dia. Ainda criança chegou a trabalhar também em uma farmácia na vizinha Tamboril. De volta a Crateús, seguiu na padaria por um tempo e depois abriu uma vidraçaria onde vendia também livros. Mas foi na Casa Norberto, negociando com ferragens e material elétrico que o conheci.
Na minha infância em Independência, por diversas vezes acompanhei o meu pai, Toinzinho (1921 – 2015), em compras na loja do Sr. Ferreirinha, que ficava no centro de Crateús, bem próxima da Rádio Educadora. Estar nas imediações daquela rádio aumentava a mística da viagem. Além de ouvir os anúncios da Casa Norberto, o nome dele aparecia também durante a programação, quando os locutores faziam a leitura de suas crônicas. Os textos que ele escrevia para o rádio, e que depois foram publicados em livros, revelam a compreensão do autor da necessidade de construção de imagens nas narrativas radiofônicas.
A escala de observação nas crônicas do autodidata Ferreirinha está na dimensão de eventos nem sempre conhecidos na historiografia oficial. Seus escritos revelam aspectos conjunturais da intimidade social, cultural e política de Crateús. É fonte primária de pesquisa e material de reconstituição do que ele entende que não deveria ser esquecido. Há um caráter etnográfico nesses comentários tirados do cotidiano da cidade como testemunho de quem sabe de perto o que ali se passou.
Enquanto pôde escrever, Ferreirinha registrou personagens e feitos possivelmente com o intuito primeiro de contribuir para Crateús se perceber como um lugar de acontecimentos próprios. Os centros urbanos em si são vazios, até que as pessoas os preencham de sentido. E tudo indica que o sentido das coisas para ele estava no esforço para sublinhar lapsos da nossa memória coletiva.
O acontecido permanece enquanto se pensa nele. A existência dos lugares e dos que os constroem (ou destroem) depende do modo como são descritos. A figura de Ferreirinha tem duplo papel nessa asserção: o primeiro, é o de micro historiador, e o segundo, o de personagem com família e vida social ativa. Na condição de protagonista, ele moveu-se nas perspectivas do comércio e da cidadania orgânica.
Como comerciante ou militante político, ele sempre demonstrou consciência do que fazia ao dizer que não se considera escritor, poeta, professor ou jornalista, “sou apenas um velho comerciante que às vezes pisa no terreno da história”. Em 2009, estive presente na solenidade de instalação da Academia de Letras de Crateús, quando Ferreirinha tomou posse na cadeira nº 1. Durante o dia passei na loja para vê-lo. Ele já não estava por trás do balcão. Sentado em um cantinho que dava para a calçada, rodeado por quadros de fotos antigas e a letra do hino da cidade, parecia que não, mas ele acompanhava todo o movimento das ruas.