Os desarranjos sanitários, políticos e negacionistas que têm contribuído para a morte de quase 650 mil pessoas de covid-19 no Brasil continuam temerariamente insistindo que vale a pena matar e morrer nesses tempos de falta de ar. Com o aumento de casos da variante ômicron e das epidemias de gripe, o carnaval foi acertadamente cancelado em vários estados e municípios brasileiros.
O que está suspenso em alguns lugares é o carnaval de aglomerações, não o espírito carnavalesco, aquele animado coração que ressoa nas ruas, que atravessa a vida em festa de cada um e de cada uma. O carnaval é um ritual de extravasamento, no qual até a mais sofrida das criaturas pode cantar, dançar, se perder e se achar na folia.
A alegria, enquanto estado ativo de satisfação, tanto pode estar na diversão do corpo nos espaços públicos quanto nos festejos da contemplação, agitados no mundo interior. Procurar classificar cada experiência humana, seus anelos, fantasias, é sempre revelador; porém, o que conta diante de uma pandemia é a inclinação do senso comum compartilhado entre o lógico e o bizarro, o deslumbrante e o apavorante.
As práticas e os domínios culturais com os quais se opera o espírito carnavalesco têm muitas naturezas. A inversão está na essência intrínseca da entidade carnaval, e é dela que se pode valer para uma folia sem aglomerações; um carnaval em forma de substância curativa e de vacina contra os tormentos diários. O IFA (Insumo Farmacêutico Ativo) do espírito carnavalesco é o fervor e a poesia.
Mas como lançar as luzes da alegria sobre as trevas da tristeza em um país marcado por desfiles cotidianos de personagens macabros disparando ódio em blocos de irresponsáveis oficiais, deploráveis autoproclamados cidadãos de bem e ilusionistas políticos? Como ver por trás das caras de pau dos que se negam a usar máscaras, comprometendo a saúde coletiva?
A realidade virou devaneio espantoso, com sambas-enredo alegóricos socialmente sancionados em diversos níveis de disfarces. O repertório emocional brasileiro parece que só toca música de pesadelo, no embalo de mensagens arrepiantes notificadas a todo instante nos grupos digitais que nos circundam.
Para romper o invólucro de langores que prende a alma brasileira de todas as colorações, é fundamental manter ativo o fogo carnavalesco e seus processos transgressores e imaginativos. O bordão deste fevereiro sem carnaval chega com sabor potiguar nos versos do poeta Chico Morais musicados por Babal Galvão: “Oh, meu carnaval / não me leve a mal / mas hoje eu não vou”. Ou seja: não aglomerar, mas desassossegar.
Esse convite extemporâneo foi também lançado pelo compositor pernambucano PC Silva em “Um frevo para PULAR fevereiro”, disponível nas plataformas de streaming, na voz de Flaira Ferro, cantora recifense que nasceu em dia de carnaval. Pular, entenda-se, não é saltar o mês, mas agitar de outro modo, evitando a transmissão massiva do vírus.
Cair na folia evitando aglomerações é o lema do estandarte da alegria para este carnaval. Fervendo por dentro, e não por fora, dando garantia aos anos que virão. A hora é de criar pontes para desfilar por cima. Mais do que provocador de um comportamento irreverente, originalmente voltado para a insubordinação ao status quo, o espírito carnavalesco é uma espécie de filtro fundamental para a oxigenação dos scripts mentais geradores do bem-estar social.