Fios candentes da teia cultural
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 01 de Abril de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Parei em frente ao hotel em que estava hospedado o ator Gabriel Guimard. Fui apanhá-lo para almoçar lá em casa. Ele havia descido e estava conversando na porta do hotel com uma pessoa que conhecera no aeroporto, ao desembarcar em Fortaleza para participar da Teia Tambores Digitais, do Ministério da Cultura (MinC), que começou dia 25 e foi encerrada ontem, dia 31, no Centro Dragão do Mar.
Pois bem, na hora em que desci do carro percebi o Gabriel apontando para mim e gesticulando para me apresentar ao novo amigo. Chego até onde eles estão e o Gabriel me pergunta se eu conheço o vídeo “Somos todos Sacys”, no que respondo: “Como não, se é o documentário de Rudá de Andrade, que temos utilizado para estimular as pessoas a participarem da festa do Saci”. Daí, o rapaz que está com ele me abraça e diz: “Eu sou o Rudá”.
Conto esta historinha de sincronicidade para dar um testemunho concreto do que é possível acontecer nos nodos invisíveis desse grande encontro de cultura e cidadania que é a Teia. Vale dizer ainda que encontrei o Gabriel quando estava com o músico e pesquisador André Magalhães vendo uma apresentação do Boi da Floresta, do mestre Apolônio Melônio, no palco de cultura popular, como foi denominado por esses dias o espaço Rogaciano Leite Filho.
A Teia é um vórtice de mobilização social, dentro da filosofia do juntar para espalhar e dentro do entendimento de que a cultura está para os grupos sociais, como o caráter está para as pessoas. É um MSN físico, no qual as mensagens são as próprias pessoas, como hipertextos de um conjunto de ideais e de valores aproximados de dentro para fora do País, para o fortalecimento da coesão mestiça brasileira.
O ministro Juca Ferreira frisou bem essa necessidade de conversa entre os fazedores de cultura na sua fala na Praça Verde do Dragão. Ele disse que o Brasil tem muito mais do que samba e futebol, mas que precisa saber disso e trabalhar para potencializar as outras manifestações culturais que ainda não conseguiram atingir o destacado grau de organização, de visibilidade e de intervenção social que têm o samba e o futebol.
Ao ouvir o discurso ardente, meio desabafo e meio provocador, proferido pelo ministro da Cultura, lembrei-me da voz de Elis Regina alertando em canto para esse grave problema brasileiro, sintetizado por Tom Jobim na contracapa do disco que fez com Miúcha em 1977: “O Brazyl não conhece o Brasil”. Tema bom, virou logo a canção “Querelas do Brasil” de Maurício Tapajós e Aldir Blanc, na qual os compositores afirmam que “O Brazil (com z) nunca foi ao Brasil (com s)” e por isso “O Brazil (com z) está matando o Brasil (com s)”.
Movimentos culturais como a Teia Tambores Digitais, que projetam escancaradamente os múltiplos do País através da troca de experiências entre os que fazem cultura, dão ensejo para que uns conheçam os outros e se reconheçam em mostras artísticas, feiras de economia cultural solidária e em encontros não marcados. E mais, possibilitam que haja sinergia na busca comum por um reflorestamento cultural capaz de criar um ambiente onde o Brasil (com s) possa conhecer o Brasil (com s).
A Teia é uma articulação do Brasil plural, do Brasil diverso, em sua futurista unidade miscigenada e sincrética. É a terceira vez que acontece. A primeira foi em Belo Horizonte (2007), a segunda em Brasília (2008) e agora em Fortaleza (2010). Integrantes de dois mil Pontos de Cultura passaram uma semana na cidade, mas a impressão que me dá é que Fortaleza, via de regra, não tem noção do que aconteceu nesses dias, dentro e no entorno do Dragão do Mar.
A cidade tem uma questão mal resolvida quando se trata de cultura “nem erudita, nem popular”, como diz Bené Fonteles. Esse vazio de debate dificulta o desenvolvimento de propostas de valor associadas a uma compreensão histórica que respalde as fontes e os jardins culturais não subordinados aos ditames do mercado e, nesse arrastado da ignorância, muitas coisas deixam de ser produzidas ou acolhidas sem a devida importância.
Os eventos promovidos pelo MinC estão simbolicamente cada vez mais ajustados à prática da mudança em favor de um ambiente cultural mais à altura do que merece a sociedade brasileira. Basta observar que no decorrer dos dias de Teia, pôde-se ver muita coisa boa e decente, como o espetáculo dos Irmãos Aniceto com a Orquestra Eleazar de Carvalho, a coroação da rainha do maracatu, o carimbó do grupo “Os Quentes da Madrugada”, a Dona Zefinha, o Calé Alencar, enfim, quase uma centena de espetáculos em variadas linguagens e formatos.
Esse cuidado para reconhecer méritos em artistas e grupos comprometidos com o processo de democratização da nossa riqueza cultural é um esforço que marca a gestão do ministro Juca Ferreira. Na II Conferência Nacional de Cultura, realizada em Brasília de 11 a 14 de março passado, as apresentações de Antônio Nóbrega, da congada mineira, do Hip Hop de Gog, Mônica Salmaso e de alguns que também participaram da programação em Fortaleza, como Chico César e o Kaosnavial, indicam claramente que o recurso público deve priorizar a organicidade do ser e do fazer cultural.
O encontro de Fortaleza teve ainda como destaque a realização da Teia de Ações, onde os contemplados com apoios do programa Cultura Viva se aproximaram para discutir suas experiências em projetos que variam de “cultura e saúde” a “interações estéticas”. Nessa busca pela emulação da diversidade cultural única do Brasil, o ministro Juca Ferreira faz questão de ressaltar que antes de ser um bom negócio, cultura precisa ser tratada como um direito. É assim que a cultura brasileira, ocultada pela dominação perversa do fundamentalismo de mercado, pode revelar o Brasil local, o Brasil de dentro, o Brasil da pluralidade, o Brasil da diversidade, o Brasil multiétnico, enfim, o Brasil trama incomparável da experiência humana.
A confluência de quem chegou para mostrar arte, para falar de cultura, de beleza e para regar a alegria, responde pelo nome de Ponto de Cultura. Essa ação do programa Cultura Viva é ao mesmo tempo o pulo do gato e do sapo, pelo que tem de genial em sua simplicidade e pelo que representa de possibilidade de ir mais longe, com um singelo abaixar-se para pegar impulso. Os Pontinhos de Cultura, que desenvolvem ações de ludicidade; os Pontos de Cultura propriamente ditos, que dão suporte às múltiplas manifestações espontâneas de cultura; e os Pontões de Cultura, que articulam regionalmente os Pontos e os Pontinhos, atuam em equilíbrio dinâmico, aumentando a base de evidências da riqueza cultural brasileira.
Observo encontros como a Teia pelo viés da valorização da alteridade e não da tolerância; pelo movimento de flexibilidade e não de racionalidade; pela condição do espírito de sociedade aberta e não pelo reducionismo identitário. Somente aquecendo os fios candentes do nosso emaranhado cultural produziremos perguntas e daremos respostas ao temperamento vacilante que ronda a intensa reconfiguração em cruso, da ordem do mundo plano para uma ordem de mundo mandala.
Ao colocar-se a serviço da sociedade e não do dirigismo de mercado, nesse tipo de ação, o MinC está contribuindo para fomentar a cidadania orgânica, aquela formada por pessoas que são de um lugar e não de uma ou outra classe; aquela formada por gente que não precisa ser intelectual nem ter filiação partidária para se expressar e fazer política; aquela formada por indivíduos e por grupos que agem porque o todo lhes interessa, porque se sentem parte do todo.