Flechas de cupido no coração de Chico César
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 26 de Novembro de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Tarsila do Amaral, Patrícia Galvão (Pagu), Lina Bo Bardi, Rita Lee, Suzana Salles, Vange Milliet, Tata Fernandes… essas admiráveis mulheres da multifacetada cena paulistana desgovernaram a lira desavergonhada de Chico César no seu choque de urbanidade há 20 anos quando o poeta paraibano chegou a São Paulo. Ele transitou pelo jornalismo, mas se estabeleceu na metrópole como um dos mais brilhantes compositores e cantores da música brasileira contemporânea. Entretanto, em um mundo de contradições por onde pulsam fetiches de Fernanda Young e veias vikings de Simone Soul, torna-se difícil escapar da tentação de encantamento.
Nessa atmosfera composta de vanguardas e conservadorismos, a flecha do deus alado fez despertar o que um coração nordestino tem de melhor, que é a capacidade de se apaixonar, e gravou em alto relevo o nome de Tata Fernandes na memória mais feliz de Chico César. Tanto que ele não suportou manter guardado os escritos poéticos que fez para ela anos atrás e acaba de lançar o livro “Cantáteis – cantos elegíacos de amozade”. De uma só vez, em um só título, joga com as palavras “canto” e “Tata” para exprimir sua “cantata”, seu poema lírico à moda antiga, e produz um neologismo de extrema atualidade – amozade – com o qual o poeta se distancia do amor sob efeito contratual para anunciar a quebra do mito que criou o medo de mesclar os sentimentos de amor e amizade.
Aos olhos normalmente atordoados do leitor contemporâneo a primeira impressão de “Cantáteis” pode ser de um romanceiro ibérico ancorado nas relações de amor e amizade como tema central dos seus poemas narrativos. As xilogravuras de João Sanchez, que permeiam o trabalho de seres fantásticos, parecem contribuir para isso, mas na verdade fazem um corte no realismo um tanto sobrenatural da nossa vida cotidiana. Os versos de Chico César são atemporais, multiestéticos e de muitas influências. Todos têm cobertura ou recheio de urgências habituais que transpassam políticas, economias, geografias, culinárias, referências bíblicas e mitológicas, urbanidades e ardores da cultura popular. “Nem parnaso nem concreto / o amor analfabeto / não lê poemas de amor / tanto faz lápis de cor / ou computador que escreva”, torna claro o autor.
Publicar essa efusiva elegia pós-moderna pode ter sido uma forma encontrada pelo poeta para reescrever muitas das sensações que o impulsionaram a ser a referência destacada que se tornou na música popular brasileira. Ao fazer isso, externa também uma certa gratidão pelos laços inspiradores. O tempo do amor nem sempre traz equivalência com o tempo de amar. “Suas mil e uma artes / seus livros de roland barthes / que não li, não sinto falta / seu beijo doce de flauta / seu olhar de pernilongo / sua dança rap jongo / clareiam minha câmara escura”, escreveu o autor há pouco mais de dez anos. Nesse período Tata Fernandes era mais do que uma companheira de “amozade”, era um parâmetro de mulher do futuro que ainda integrava os vocais da banda de Chico César. E cada verso vai desnudando em si mesmo a sua íntima atitude.
Escrito na intensa fluidez da paixão, “Cantáteis” é um livro de cantos feito pelos cantos. Uma ótima oportunidade para estimular os fãs do compositor e cantor a se aproximarem mais da poesia. O ofício da palavra está cada vez mais necessário nos dias de hoje. Diante do avanço da anticultura de consumo, na qual premia-se quem não se importa com nada, quem finge não sentir dor e quem imita as melhores imitações, Chico César não se intimida e contra-ataca a tragédia do alheamento, a praga apocalíptica e a indiferença generalizada com versos cheios de alma e de conteúdo universal, como quem acredita ser um grande amor uma das coisas imprescindíveis na vida. Mesmo que seja apenas para lembrar.
Em seu longo poema, Chico César revela o otimismo do desejo de quem sente a importância do outro e mostra que sabe bem as razões da sua condição de apaixonado. O que em nenhum momento leva seus versos a tergiversarem sobre os sentimentos. “Onde estará a amante / eu pergunto ao viajante / ele responde: na estrada / onde estará a amada / eu pergunto ao passarinho / ele responde: no ninho / nenhuma exata resposta / e o vinho de que ela gosta / estoco em minha adega / para quando a paixão cega / enxergar a mesa posta”. As palavras dizem o que ferve no peito do narrador e ganham as páginas como lava de coração incandescente.
“Cantáteis” é um produto cultural concebido sem amarras e por isso mesmo excetuado da mesmice festejada pelo nosso despotismo ilustrado. É verve em movimento, isolando a translação da Terra para alcançar os anos que virão prenhes da paz. Recorrer aos prazeres da memória é uma maneira sábia de demonstrar crença no centauro do futuro desenhado pela reincorporação das emoções sinceras. No epílogo o autor diz que escreveu esse livro estimulado pela força dos poemas extensos e eternos na literatura universal e cita “Os Cantos” de Erza Pound, “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto, “Altazor” de Vicente Hidobro, “O Guesa” de Souzândrade e a “Divina Comédia” de Dante Alighieri.
É curioso ler o livro de poemas de um artista que já nos brindou com inúmeras músicas de letras tão caldeadas em belas poesias. Em “Cantáteis” dá gosto apreciar a sensibilidade do autor e sua tradução visual de “amozade”, sem com isso reduzir a palavra a uma mera figura de composição. “Sim, gorvinda ama sidharta / mas é preciso que parta / vai num groove em espiral / expirar o bem e o mal / esperar godot e deus / a folia de Mateus / o inefável banquete / o tambor o tamborete / o torniquete no peito / está tudo para ser feito / febem e instituto Goethe”. O autor esquadrinha a colagem imagética típica do cordel, da cantoria e da peleja para exultar sua carta de devoção poética sem qualquer subordinação ao tempo e ao espaço.