Havia no meio literário em que eu circulava na juventude o senso de que, salvo em antologias, uma obra não deveria ser republicada sob pena de o autor passar a ser visto como estagnado. Era comum também a existência de defensores da permanência da forma original do trabalho, ou seja, depois de escrito um texto não deveria mais ser mexido, pois isso anunciava a incapacidade de o autor escrever algo definitivo.
Tangidos por esses fantasmas, resolvemos, na então Cooperativa de Escritores e Poetas (CEP), publicar um folheto mesclando nossos trabalhos com obras de autores renomados. A premissa para participar dessa coletânea era que fossem textos inéditos. A mim, coube pedir um poema ao poeta Jáder de Carvalho (1901 – 1985), com quem eu tinha o hábito de conversar e a quem ouvia sempre com admirada atenção.
Cheguei, como costumava chegar, na casa da rua Agapito dos Santos, 389, no Centro de Fortaleza, onde morava o poeta. Era um sobrado com duas janelas de venezianas na parte superior, duas na parte inferior, estas sob vitrais coloridos, e um pequeno portão de ferro ao lado, por onde se entrava. Sentei-me no sofá da sala, e logo ele sentou-se ao meu lado.
O telefone tocou no andar de cima e ele pediu licença para atender. Descalço e só de calção subiu com passos rápidos as escadas de madeira em espiral. Ainda lembro do ritmo daquele toc-toc-pluct e do vapt-vapt dos seus gestos de quase oitenta anos apoiando-se no corrimão. Essa era uma cena comum às vezes em que frequentei a casa de Jáder de Carvalho.
Expliquei a ideia do folheto, destacando o pressuposto do ineditismo dos poemas a serem publicados, como ponto de atração para despertar o interesse de leitoras e leitores. Ele pediu um instante e subiu novamente as escadas no mesmo toc-toc-pluct e vapt-vapt. Retornou com um livro, do qual, na minha frente, arrancou duas folhas e me entregou, dizendo: “Pode publicar este; é inédito”.
Era o poema “Árvore”, no qual Jáder trata da questão ambiental a partir de um pé de pau-d’arco que plantou no sertão e que foi cortado por algum “criminoso de milhares de mortes vegetais”. Revoltado com a perda, o poeta desabafa: “Então, fechei os olhos e vi a terra sem árvore, sem governo, toda nua. Vi tudo sem jeito, sem remédio. Vi tudo brasileiro”.
Não sei o que mais me deixou perplexo, se a mensagem do poema ou a situação em si. Procurei retomar o aspecto da obra ainda desconhecida do público, quando Jáder se antecipou e disse: “Não se preocupe, somos todos inéditos, você e eu. Pode publicar que não aparecerá ninguém dizendo que já leu este poema em outro lugar. As tiragens dos nossos livros são mínimas e somos um povo condenado à ignorância”.
Fiquei chocado, sem saber o que dizer, mesmo tendo o costume de ouvir dele histórias impactantes e de ler seus poemas de cunho social e político. Querendo ou não, eu estava ali diante de um dos nossos intelectuais mais consagrados. “Somos todos inéditos”, repeti em pensamentos aquela sentença. Assenti com a cabeça, agradeci a colaboração e levei as páginas arrancadas do livro para publicar, como se fossem inéditas.
Por falta de recursos não conseguimos viabilizar a publicação do folheto, mas tudo aquilo soou para mim como uma incitação: publicar e republicar sempre! Ao fim e ao cabo, como filho do sertão dos Inhamuns, foi na obra de Jáder de Carvalho, ele, filho do sertão central, que li: “Nos campos dos Inhamuns, mesmo sem chuva, a poesia não morre”. Tomei isso como missão.