O crescente e espantoso vazio referencial dos tempos atuais parece ser um dos mais complexos problemas contemporâneos. Gurus de todos os gêneros e de toda ordem se aproveitam desse adoecimento psíquico coletivo para prestar, em nome de Deus, dissimulados serviços de orientação espiritual e de autoconhecimento para pessoas emocionalmente vulneráveis em busca de cura.

Essa onda de doutrinações falaciosas e de manipulações psicossociais tem gurus que corrompem as finalidades de diversas religiões, terapias, campos políticos, educacionais, artísticos, desportivos e midiáticos. Patrocinadores de irracionalidades, esses falsos guias, mitos e líderes existenciais praticam desde estelionato ideológico até extorsões, coações e abusos sexuais contra seguidores e fiéis.

Enganadores e exploradores de devoções obscuras estão presentes na história, com alcances relativos ao poder de comunicação de cada época. Na atualidade, os fantásticos meios digitais e em rede também estão sendo corrompidos para intensificarem a transmissão de mensagens fraudulentas, mobilizadoras de negação à Justiça Social e ao Estado Democrático de Direito.

Diante dessa realidade de tantas pregações mal-intencionadas, é fundamental que se procure conhecer o que há por trás do comportamento deificado dos gurus a qualquer tempo. Com essa abordagem, está disponível na Netflix o filme O Rei do Povo (Maharaj, 2024), do diretor indiano Sidharth Malhotra (45), que faz um precioso relato sobre as artimanhas de um líder de seita na exploração sexual de mulheres.

JJ (Jaideep Ahlawat) e Karsan (Junaid Khan) em Maharaj (2024)

Inspirado em fatos amplamente registrados e adaptado do livro “Maharaj”, do escritor indiano Saurabh Shah (64), O Rei do Povo conta o histórico enfrentamento do jornalista Karsandas Mulji, defensor da emancipação feminina, contra o marajá Yadunath Brijratanji, líder de uma seita e endeusado pela população, caso julgado em 1862 por juízes britânicos imperiais no Supremo Tribunal da, então, cidade de Bombaim (hoje Mumbai).

O artigo “O Hinduísmo Verdadeiro e as Práticas Fraudulentas Atuais”, no qual Karsandas acusa Yadunath de abusar de suas devotas em sessões de sexo de salvação do “Serviço Divino” no próprio templo (Haveli), foi motivo para a queima de jornais, sua expulsão de casa, pressões populares e um processo de difamação que envolveu sumiço de testemunhas e muita reflexão por parte do acusado.

No filme, o personagem Karsan (Karsandas) utiliza vários argumentos que merecem aprofundamento no contexto atual, considerando-se os fornecedores de “Serviços Divinos” nos diversos setores da sociedade: “Não é preciso de ponte para alcançar o divino”, “As crenças religiosas são muito íntimas, pessoais e sagradas”, “A paixão pelos meios dificulta chegar ao destino” e o mais simbólico de todos, “A fé precisa de sabedoria”.

O conflito entre fé e amor é a tônica de O Rei do Povo. Apresentando-se como descendente de Deus, JJ (Yadunath) responde com cinismo às reclamações das noivas abusadas por ele, antes até de serem beijadas pelos pretendentes, quando descobrem que foram vítimas do venerável mestre: “Aconteça o que acontecer, será o melhor. É a vontade de Deus”.

No tribunal, quando faz a sua defesa, sem testemunhas, Karsan resolve falar tudo o que pensa e sabe a respeito dos atos de JJ. Diz que naquele processo aprendeu uma lição: “Só diga a verdade se tiver provas”. Outra lição estava por vir, quando entre os presentes surge uma testemunha inesperada, que provoca a reviravolta que tornou esse fato exemplar para a história.

Fonte
Jornal O POVO