FORRÓ DO FICO – Amizade amorosa
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº 162 (Editora Riso), págs. 20 e 21
Edição de setembro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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No show INVOCADO, da Banda Dona Zefinha, o Orlângelo Leal tem falado para o público que nos forrós orgânicos do Ceará “ficar”, mais do que uma relação efêmera, é uma possibilidade de encontrar um grande amor. E a banda toca a nossa parceria Forró do Fico, que começa assim: “Onde tem forró eu fico / no pé do ouvido / vou chegando com cautela / no chiado da chinela / o suor pingando / meu umbigo encostando / no umbigo dela”. 

O refrão é todo feito de imagens lúdicas: “Forró do fico / testa com testa / vou ralar bico no bico”. As palavras vão se metamorfoseando em um jogo de significados que pode levar a outras dimensões perceptivas: “É muito mito esse forró / dançando eu fico / pra namorar / pra chamegar com a donzela / O fogo sobe / a paixão me desmantela / Um romance Lancelot / roçando na coxa dela”. 

Para agitar o movimento interior do sentido da composição, colocamos a figura de Lancelot, um dos mais badalados cavaleiros medievais, como referência de um tempo distante em que esse tipo de envolvimento afetivo também era comum e se chamava “amizade amorosa”. É famosa a atormentada paixão de “fico” entre Lancelot e a rainha Guinevere, mulher do rei Artur, da Távola Redonda. 

A história desse bravo cavaleiro, defensor de damas e donzelas, está em um romance anônimo do século XIII, intitulado Lancelot, editado pela Martins Fontes (2007). Nele, a “amizade amorosa” viceja como fonte de proezas e de virtudes cavalheirescas, entre castelos, armaduras, duelos, torneios, raptos, relações secretas, vontades, caprichos, ciúmes, confissões, juramentos, confidências e perseguições que se alternam entre a crueldade e a compaixão. 

Encontrar aventuras dignas de serem lembradas era a fortuna de todo cavaleiro. A paixão, que o impele a correr perigo com o intuito de confirmar seu valor, alcança plenitude no ato sexual. E o “ficar”, nesse tempo em que as pessoas temiam mais a desonra do que a morte, era marcado por amores culposos e sonhos pesarosos, suportados pelo ideal do amor cortês e sua liga íntima de bravura e paixão. 

O caso de “fico” de Lancelot com Guinevere era complicado por conta da posição dela em um reinado considerado exemplar na história da Grã-Bretanha. Se, por um lado, a rainha vivia inventando torneios para atrair a presença do seu cavaleiro-amante, por outro, o rei fazia de tudo para também tê-lo por perto, já que era apaixonado por sua valentia. 

As cenas do cavaleiro e da rainha descritas no romance são preciosas. Quando eles se conhecem, o narrador diz: “Ela lhe lança olhares meigos, e ele também a contempla discretamente sempre que pode (…) Ao sentir aquela mão, ele estremece como se saísse de um sonho (…) Ela percebe que ele está perdido em pensamentos” (p.28). A rainha dá a Lancelot um anel “como penhor de amizade amorosa” (p.174). 

A preocupação para que o caso dos dois não fosse descoberto é outro ponto curioso ao longo do romance: “Cuidai para que tudo permaneça em segredo, pois sou no mundo uma das mulheres de quem já se falou o maior bem; se meu nome sofresse mancha por culpa vossa, seria um amor feio e vulgar” (p.64). Imagine-se uma situação dessas, na qual o desejo de Lancelot de se firmar como um herói incomparável para a rainha ia ao encontro do coração arrebatado de Guinevere, que não concebia a hipótese de perdê-lo. 

O teor dos recados fala por si: “Se estiverdes apenas levemente ferido, dizei-lhe que venha encontrar-me depois do anoitecer, tão discretamente que ninguém o reconheça” (p.236). Lancelot deita-se com a rainha: “Ardendo de amor compartilhado eles conhecem todos os gozos reservados aos amantes” (p.91). “Eles prolongaram a permanência ali, sem sentirem vontade de falar, entregues à volúpia dos abraços e dos beijos” (p.68). “Pouco antes de nascer o dia a rainha aconselhou Lancelot a ir embora, porque o rei costumava vir encontrá-la de manhã” (p.237). 

Páginas vão, páginas voltam, e Lancelot confessa à rainha que ela é a razão de suas aventuras; que ser considerado por ela um “amigo querido” é seu reconforto em todas as provações. Mas, mesmo fiel à rainha, o “ficar” na vida do mais extraordinário dos cavaleiros da Távola Redonda acontece em várias tentativas de sedução por parte de damiselas que sonhavam em fazer sexo com alguém tão fascinante. 

O romance conta que, enganado, muitas vezes ele “fica” com damas e donzelas. Há relatos de Lancelot com damiselas “se desejando por razões diferentes” (p.220), casos de relação sexual com a filha de outro rei, com quem tem um filho, e enrosco amoroso de uma donzela que após salvá-lo de envenenamento deseja possuí-lo em nome do sentimento de que “nunca havia amado de amor” (p.207). 

De tanto “ficar”, Lancelot perde a condição de pureza, necessária para levar a termo as aventuras do Santo Graal (realizadas posteriormente pelo seu filho Galaad). A rainha diz a ele que está triste por tê-lo prejudicado com o seu amor. No que ele responde: “Sem vós eu não teria alçado a tão nobre grandeza (…) Sabia que, se não conseguisse vencer as aventuras, nunca chegaria a vós” (p.243 e 244). Chegou, e chegou bonito; por isso “é muito mito esse forró”!!!