Desenvolvi um método para as crianças me ajudarem a contar a história de Fortaleza nas vezes em que sou convidado a ir a escolas públicas e privadas para falar sobre a cidade com estudantes, normalmente do 3º ano do ensino fundamental, que estão desenvolvendo atividades educativas a partir da leitura do meu livro “Fortaleza – de dunas andantes a cidade banhada de sol” (Cortez, 2005), com ilustrações de Valber Benevides.
A prioridade nesses encontros é a fala da cidade reverberada nas vozes das crianças. O único recurso que solicito para essas interações é o de projeção do videoclipe da música tema do livro, interpretada pela cantora Mallu Viturino, com participação de um coro formado por crianças regidas pelo maestro Tiago Nogueira. Não sendo possível, uma caixinha de som resolve. O importante é poder combinar literatura e música nessa dinâmica.
O início de tudo é a proposta que faço de uma saudação bem suave:
— Podemos dar um bom dia bem baixinho?
— B o m… d i a…
Quando esse bom dia (ou boa tarde) é dado em pianíssimo, como se diz em música ao definir uma intensidade sonora branda, sinto que o método funcionará bem.
Aproveito o silêncio estabelecido com o exercício do cumprimento mútuo em voz baixa para afirmar que quando tinha a idade deles eu não conhecia Fortaleza. Embora a minha biografia conste no livro adotado pela escola, e esteja escrito lá que nasci no Sertão dos Inhamuns, noto que isso causa uma certa perplexidade. É que o paradigma colocado por mim está no plano da faixa etária, e não no da localização de nascimento.
Enquanto isso, revelo que viajei mais de 300 km de ônibus no meu deslocamento para morar em Fortaleza e que, ao chegar na cidade, percebi logo que ela falava. Daí cito a música tema do livro, no trecho em que chamo a atenção para a questão central do método: “Quem disse que cidade não fala, hein? / Pois cidade fala também”.
E relato algumas das primeiras expressões que escutei de Fortaleza:
— Olha como tenho muitos prédios grandes! Veja como as minhas praias são lindas! Você já imaginava tantas ruas e tantos carros?
Após mencionar a voz que ouvi de Fortaleza em diferentes circunstâncias, circulo livremente entre eles e pergunto se alguém gostaria de compartilhar alguma coisa que escutou da cidade, inclusive durante o trajeto de casa para a escola. É incrível como muitos levantam os braços para dar testemunhos mais ou menos assim:
— Escutei a cidade gritando por socorro! — disse uma menina que havia presenciado fogo em um terreno baldio.
— A cidade me disse que onde tem passarinho solto tem árvore — relatou outra que tinha ficado preocupada com um passarinho que atravessara a rua voando.
— Fortaleza disse que nem todo lugar é seguro — reportou um garoto que fora ao parque com a turma da escola e ficou com vontade de sair caminhando pelas ruas.
Como esses, são muitos os depoimentos de meninas e meninos sobre a audição da cidade, em termos de lixo nas calçadas, de poluição sonora, engarrafamentos e da existência de pessoas que moram nas ruas.
É mágico o instante em que eles se dão conta de que ‘a cidade fala’. Em um desses encontros, um menino com ar filosófico aproximou-se de mim e sussurrou:
— Flávio Paiva, eu não consigo escutar a cidade.
— Será que não? — procurei devolver a ele a naturalidade da percepção. Instantes depois, ele disse:
— Ouvi, sim! Vi um papel jogado na rua e ouvi a cidade falar que quem fez aquilo só pode ser uma pessoa mal-educada.
A reciprocidade perceptiva decorrente desse contato direto com leitoras e leitores me anima, sobretudo quando as crianças fazem elaborações revolvidas na essência do conceito:
— Flávio Paiva, a gente escuta a cidade, mas a cidade também escuta a gente, não é? — indagou um menino pensativo.
— Perfeito! — respondi contente àquela intervenção luminosa, argumentando que tudo o que fazemos em nossa experiência urbana é escutado pela cidade como mensagem do que oferecemos a ela.
Diante da observação de que a cidade também nos escuta, mencionei, como exemplo, os insultos que Fortaleza vive a ouvir das pessoas responsáveis por tanta derrubada de árvore na cidade, sem dar qualquer importância à função da cobertura vegetal urbana, mesmo quando crescem no mundo as ondas de calor extremo, as tempestades, inundações, secas e outros efeitos das emergências climáticas.
Mostro as páginas do livro Fortaleza, em que aparecem as ilustrações das dunas andantes, sobre as quais caminham adultos e crianças dos povos originários. Questiono como ouvi a cidade falando do seu passado, quando eu não estava lá, e digo que deparei com sua voz nos livros, nas bibliotecas e no reconto de pessoas mais velhas, que ouviram a cidade antes de mim.
Fortaleza fala também do passado através de prédios antigos preservados (Theatro José de Alencar), de árvores frondosas que ainda resistem em algumas ruas (oitis da avenida Rui Barbosa), de lugares de acontecimentos históricos (Passeio Público), de áreas verdes sobreviventes (Parque do Cocó) e do forte que dá nome à cidade (Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção).
A cidade está sempre contando o que se passa com ela. Uns vão ouvindo, contando o que ouviram, e, assim, se escreve a história e se valoriza a memória do que somos.
Fonte
www.rivista.com.br