Fortaleza e o cicloativismo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 30 de Junho de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Vez por outra vou ao trabalho de bicicleta. Gostaria de ir todos os dias, mas infelizmente não temos uma cidade preparada para isso. Aos domingos, pedalo pelas ruas com o meu filho Lucas, de doze anos. Sempre um roteiro diferente. É muito bom, a cidade ganha outra vida para nós, embora a defasagem de Fortaleza em termos de infraestrutura e em nível de civilidade assuste. É arriscado, mas fazer o quê? Os logradouros públicos precisam ser efetivamente públicos. Isso é uma questão de direito de urbanidade.
Ainda mantemos o velho modelo rodoviarista, que prioriza o carro e que tem no famigerado recapeamento asfáltico a prova máxima de que o poder público “está trabalhando”. Não tem cabimento preservar essa situação de desgoverno. A cidade necessita de intervenções substanciais, capazes de reduzir os engarrafamentos, o desgaste das horas paradas, a poluição, os gastos desnecessários de combustível e o estresse do usuário.
Tomando o recorte especifico da questão do trânsito, é notória a urgência que temos de investir em planos e ações cicloviárias, com faixas exclusivas para a interligação de praças, parques e praias. Estamos atrasados com a inclusão do verbo pedalar na gramática do nosso comportamento social, significando contribuição à qualidade de vida. E é porque, tendo uma topografia plana, Fortaleza facilita o ciclismo como paisagem humana em seu tecido urbano.
Pedalando pelas ruas da cidade somos levados a sonhar com ecovias, numa redefinição de espaço viário, com priorização do pedestre, do ciclista e dos transportes coletivos antes dos carros. Já imaginou se tivéssemos (ou quando tivermos) ciclovias em corredores verdes, sombreados, com fiação enterrada e iluminação de LED, menos danosa à natureza, por não ter mercúrio nem elementos à base de chumbo e cádmio, como é comum nas lâmpadas da iluminação pública?
Dentro do incipiente processo de conscientização ambiental, que pede (e vai chegar a exigir) medidas para redução das causas nocivas à natureza e à qualidade de vida das pessoas – tal como a inspeção veicular ambiental – cresce um cicloativismo, que começa a pressionar a mudança no ritmo do trânsito. Houvesse uma compreensão maior por parte do poder público no que diz respeito a mobilidade, serviço de segurança para o deslocamento de bicicleta para o trabalho, para a escola, para a prática de atividade física, lazer e turismo a realidade certamente já seria outra.
Estou me referindo a medidas simples, como a liberação da área hoje destinada à zona azul para espaço de proteção de ciclistas, associado à devida regularização da largura, inclinação e tipo de piso das calçadas. Ou o fomento à criação de estacionamentos privados com pedágio e tempo gratuito para paradas rápidas. Sem contar que a substituição das áreas de Zona Azul por ciclovias aqueceria a economia dos estacionamentos e, associada aos calçadões, dinamizaria o comércio lojista.
O incentivo ao fluxo da bicicleta como transporte, lazer e atividade física, pode ser feito naturalmente dentro da noção de planejamento por zona, de polinucleação, desenvolvimento e fortalecimento de centralidades regionais. O compartilhamento de bicicletas pode inclusive ocorrer em áreas específicas como nos campi universitários. Aliás, os campi universitários deveriam ser trançados de vias destinadas à circulação de bicicletas.
Existem muitas partes da cidade que só dependem de vontade do município para se tornarem ciclovias ou para receberem ciclofaixas, possibilitando deslocamentos seguros e confortáveis. A recuperação das más condições das ciclovias existentes também não é algo muito custoso. Pedalar na ciclovia da Via Expressa, por exemplo, é qualquer coisa de ruim, pelos desníveis do cimento quebrado, pela sujeira e pela precária sinalização. Ainda não andamos pela nova ciclovia do canteiro da avenida Bezerra de Menezes, mas já vi que tem postes e lixo ao desgosto de quem a escolher como opção.
Aos domingos e feriados, daria para “pintar” algumas ciclofaixas de recreação e lazer aberta em avenidas como a Beira-Mar, a Rogaciano Leite, a Leste-Oeste e a Oliveira Paiva, como opção de convivência de ciclistas, skatistas, patinadores, cadeirantes e pedestres que quisessem flanar e passear com animais de estimação, vender sucos, refrigerantes, água, comidas… O desperdício que fazemos da Praia do Futuro como rota de lazer é injustificável. Passeios ciclísticos como o que pode ser feito no Parque do Cocó deveriam ser multiplicados. São muito agradáveis, porém ficam isolados por falta de uma malha ciclística que desemboque nas suas trilhas.
O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) determina em seu artigo 21 que os órgãos públicos, além de cuidarem do trânsito de veículos, de pedestres e de animais devem promover “o desenvolvimento da circulação e da segurança de ciclistas”. Isso deveria ocorrer normalmente. Como não acontece, criar essas alternativas seria o mínimo de respeito à cidadania. No artigo 58, o CTB diz inclusive que a autoridade de trânsito “poderá autorizar a circulação de bicicletas no sentido contrário ao fluxo dos veículos automotores”. Em Fortaleza, como não há qualquer indicação nesse sentido, o jeito é encarar automóveis, vans e ônibus de frente, como recurso de proteção entre valas irregulares, o meio fio e o asfalto, cada vez mais elevado por conta das sucessivas camadas de recapeamento.
A cidade precisa que a administração pública tenha mais imaginação, que saia do improviso, da casualidade e da concepção malufizada de “mostrar serviço” propagandeando números de obras. Dentro do entendimento de que devemos pensar a cidade como ela pode ser e que a essa altura do campeonato não dá para esperar por projetos de ressignificação, quando me junto aos que defendem coisas simples – como espaço para pedestre e bicicleta – penso nas possíveis intervenções honestas, que respeitem as peculiaridades dos bairros, das ruas e das pessoas.
Muita gente anda de bicicleta em Fortaleza. E não é de agora. Na periferia e na aventura ciclística rumo ao trabalho, é comum a presença silenciosa e desamparada do ciclista trabalhador. Uma política capaz de atender à demanda por ciclovias e ciclofaixas ampliaria a circulação de bicicletas também na hora de fazer pequenas compras, de ir à banca de jornais e revistas, de ir à escola, ao médico, ao banco, visitar amigos…
Dentro da noção de cicliturismo já vivenciei com os meus filhos três situações que me conferem a convicção de que vale a pena incluir esse tema na nossa agenda de cidadania. No Rio de Janeiro, pedalar em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas com bicicletas alugadas nos coloca dentro dos ares da cidade; em Bogotá, a integração do fervilhar de gente nas grandes avenidas com espaços protegidos dos carros enseja uma experiência única de vivência; e em Buenos Aires, no passeio que fizemos de bambucicleta em uma tarde calma de sábado portenho, nos aproximou dos bairros da cidade e do Parque Ecológico do Rio da Prata.
Na base do pedal e sem o resguardo da lataria do carro, andar de bicicleta nos põe nu pelas ruas, por dentro de algo que está bem acima da compreensão apenas de arquitetos, urbanistas, engenheiros de tráfego e políticos. Esse é um assunto também da sociologia, da história, da psicologia, da cultura popular, enfim, de todos nós. Livrar Fortaleza dessa situação paralisante depende apenas de um melhor engajamento da sociedade civil.