Gil de todos os santos
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 20 de Junho de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

Artigo em PDF

Da última vez que Bené Fonteles esteve em Fortaleza, no final do ano passado, me presenteou com o belo livro “GiLuminoso” (Edições UnB), no qual reúne poemas, ensaios e fotografias sobre a vida de Gilberto Gil. Entusiasmado com a leitura de uma obra, na qual um artista revela a alma de outro artista, pensei logo em multiplicar esse prazer escrevendo um texto com as minhas impressões e emoções resultantes do contato com a poética que distingue a publicação. Dois motivos ocultos levaram-me a reforçar esse desejo: quando Bené, que eu conhecia apenas como artista plástico, lançou em 1983 o LP “Ben(e)dito”, acendeu em mim a coragem de começar a mostrar alguns esboços musicais que eu produzia com vergonha de não ser músico; também foi por conta desse disco que, ainda estudante de Comunicação Social na UFC, publiquei meu primeiro texto assinado neste O POVO.

Como nem sempre o que penso em fazer é o que acabo fazendo, só agora concretizo esse desejo. Ao longo desses poucos meses, com o livro de Bené na cabeceira da cama e da rede, agucei mais e mais a minha percepção sobre Gilberto Gil. Cada vez que fui me deparando com a sua obra e com as notícias da sua movimentação intensa pelo mundo da arte e da cultura, fui agregando simpatia ao que antes, por atenção dispersiva, deixava girar em torno de respeito e admiração. Recorrendo a Rudyard Kipling para tentar externar a dimensão que consegui alcançar do compositor baiano, diria que Gil é um ser múltiplo que conseguiu, encontrando a desgraça e o triunfo, dar o mesmo tratamento a esses dois impostores.

Tenho procurado organizar meus horários para ver a série Música do Brasil (Abril Entretenimentos) que a MTV vem exibindo toda sexta-feira. O programa mostra a abundância de ritmos, estilos e temas identificados pela expedição cultural conduzida pelo antropólogo Hermano Vianna. Cercado de batuque, coco, folia de reis, baião, samba, maracatu, hip hop, boi-bumbá, rancheira, valsa, tambor-de-crioula e outras tantas oferendas musicais da nossa pluralidade criadora, Gilberto Gil faz a apresentação como um MC de todas as tribos. Fala, toca e sublima cada passagem com a desenvoltura de quem faz parte de todos os fragmentos da diversidade e tem consciência disso.

Como ponta-de-lança do Panorama Percussivo Mundial, que vem acontecendo há sete anos na Bahia, Gil influencia mais uma vez no processo de retomada da referência nordestina, de centro cultural brasileiro, ainda concentrada no sudeste desde que a capital do país foi mudada de Salvador para o Rio de Janeiro. Impulsionado por um conceito de coesão de expressões populares primitivas e nascido dos efeitos da relação da universidade baiana com a sociedade, este ano o Percpan foi projetado em outros estados e no exterior, estendendo a caminhadura da nossa força cultural.

Enquanto, na condição de antena, trabalha para captar o que tem de bom pelo planeta e para inverter o sentido da informação cultural no Brasil e no mundo, Gilberto Gil está constantemente cuidando das nossas raízes. O seu mais recente CD, com as canções que integram a trilha do belíssimo filme Eu, Tu, Eles, de Andrucha Waddington, revolve e atualiza a sonoridade e a ardentia romanesca do sertão nordestino. Traz de volta o cancioneiro de Luiz Gonzaga e boa parte da sua plêiade de poetas, representados no disco por Humberto Teixeira, Zé Dantas, Antônio Barros, Guio de Morais, David Nasser e, ainda, por Dominguinhos e pelo próprio Gil, que um dia o rei Lua declarou com generosidade que estariam entre os seus herdeiros na permanente construção do nosso imaginário.

No livro “GiLuminoso”, Bené Fonteles organiza a fina textura intuitiva da obra de Gilberto Gil e acrescenta ecos peculiares da relação de amizade e afinidade transcendental existente entre eles. A publicação contém quatro módulos: um ensaio de Bené (Ao Compositor), 50 letras (Do Compositor), depoimentos (O Compositor me Disse) e um CD inédito com 15 canções (O Compositor Canta). Para completar, fotografias de Mário Cravo Neto, Pierre Verger (tributo in memoriam) e Mário Friedlander, ilustrações de Arnaldo Antunes, frases de Caetano Veloso abrindo os capítulos e a reprodução de um bilhete de Egberto Gismonti, em envelope a quem interessar possa.

A sintonia radical e planetária de Gilberto Gil é de uma sofisticação impressionante. Quando muita gente ainda vive atordoada pelo choque existencial provocado pela rede mundial de computadores, em 1969 ele já havia resolvido esse drama na música “Cérebro Eletrônico”, quando reconhece que o computador “faz tudo / faz quase tudo (…) manda e desmanda”, mas afirma categórico que “Só eu posso pensar se Deus existe / Só eu posso chorar quando estou triste” e complementa: “Eu posso decidir se vivo ou morro”. Gil devolve para todos nós a responsabilidade de, com nossos “botões de carne e osso” fazer alguma coisa se queremos alguma coisa na vida. Talvez por essa lucidez instintiva Caetano Veloso, seu irmão de sonhos e pelejas, tenha escrito que “Gil crê em Deus e eu creio nele”. E crer é um verbo transitivo direto.