Dá um sentimento de indignação saber que o artista plástico aracatiense Hélio Santos, 76, perdeu o lugar do seu ateliê no casarão que um dia foi do Monsenhor Bruno, na Rua Grande, e voltou a morar em uma casinha alugada de espaços apertados. Ele, que carrega em sua história parte significativa da cultura cheia de fé, movimento, cor e arte brincante de Aracati, não pode receber esse desprezo de sua cidade tão famosa por um passado de abundância e tramas libertárias.
Os gestores do patrimônio da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário devem ter os seus motivos para dar outro destino ao imóvel, mas afastar um artista de um templo da arte popular localizado em corredor turístico da cidade não se limita a argumentos de mistérios dolorosos. Hélio Santos mantinha no casarão um teatro de bonecos e um minimuseu de bonecos cabeçudos do bloco Universo Negro de maracatu. O diferencial dos bonecos carnavalescos de Hélio Santos é que eles são mamulengos gigantes, articulados, feitos de papel machê endurecido.
Bonecos que já desfilaram na avenida Domingos Olímpio e na praça do Dragão do Mar, em Fortaleza, e nas ruas de Berlim, no Carnaval das Culturas de 2011, ao lado de grupos de cultura popular de vários lugares do mundo. Em Aracati não há quem não os aplauda quando passam pelas ruas e avenidas da cidade. Eles alegram, divertem e inspiram reflexões sobre o respeito à diversidade étnica e cultural. Hélio Santos é autodidata e mestre orgânico de educação para a cidadania.
Entrevistei o Hélio Santos em 1991, quando ele se preparava para participar no ano seguinte de uma exposição comemorativa dos 150 anos de Aracati, no Museu Jaguaribano. A preocupação do artista naquele momento estava direcionada para a preservação dos sobrados coloniais. Sentia-se incomodado com a decadência de uma memória arquitetônica que perdia lugar para edificações modernosas; daí pintara com tinta látex e acrílica o relevo de fachadas que construiu em papelão sobre moldura de compensado e sarrafo.
Com jeito simples e paciente ele dá sua resposta a essa situação enfeitando a casinha onde passou a morar com alegres paredes amarelas, cheias de fotografias, máscaras e pinturas. A essência está preservada, embora a indumentária do seu figural de teatro e as enormes cabeças dos bonecos de rua disputem espaço com os instrumentos da oficina. Artista plástico e bonequeiro, Hélio Santos faz muitas coisas, mas ganha seu sustento como restaurador de obras sacras.
A proximidade com os santos não foi capaz de, no entanto, produzir ampla compreensão sobre o trabalho de alguém que gosta do que faz e que acredita na arte como uma necessidade humana. Isso tem pouco valor em um tempo em que a beleza e a alegria não passam de simulações de felicidade postadas nas redes sociais. Ele é de vera e, talvez por existir de fato, esteja sendo considerado descartável.
Será uma vergonha se os aracatienses deixarem o Hélio Santos largado à própria sorte; um artista que é parte do mapa cultural de Aracati e do Ceará. Desperdiçar talentos tem sido um mal que vive em nós e que aflora a cada situação como essa, desonrando a nossa cultura. Deixar que um artista como o Hélio Santos saia de cena é aceitar a privação do acesso à arte como medida desprovida de sentido comunitário, urbano e humanista.