Hiperrrealidade e desaparição
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 15 de Março de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Ao ler a republicação no sábado passado de trechos da entrevista de Jean Baudrillard, conferida a este Diário em 1989, quando o sociólogo e filósofo francês esteve em Fortaleza, reacendi em mim um velho sentimento referente à curvatura atual dos nossos valores prevalentes. O jornalista José Anderson Sandes destaca, entre outras passagens, a opinião de Baudrillard, falecido na terça-feira, dia 6, sobre um mundo marcado pela instabilidade de conceitos: “Há um dado momento todo um sistema de valores pode afundar, submergir. Porém, pode afundar de uma maneira gloriosa ou de um jeito lamentável”. Para ele, o que muita gente categoriza como decadência não passa de desaparecimento, de saltos e mutações.
Recortei esse fragmento e pus-me a refletir sobre o fenômeno da mutação dos significados, tentando aplicar essa compreensão aos dias atuais. Identifiquei três saltos de transição associados ao tempo de Baudrillard (1929 – 2007), que me ajudaram a chegar a uma noção do que estaríamos vivendo. As três variações de desaparição que observei estão ligadas por efeitos da hiperrealidade derivada da influência capitalista do mundo ocidental moderno. Hiperrealidade entendida aqui como a superposição forçada da imagem do real sobre a própria realidade.
O primeiro salto apresenta-se no início do século XX, quando ainda predominava o senso proverbial de que “O trabalho dignifica o homem”. A realização humana, motivada por essa moral, se daria invariavelmente pelo trabalho. Onde a hiperrealidade? No superdimensionamento da importância do trabalho, o que inibiu as demais relações sociais e o cultivo do ócio. Resultado: mais produção do que capacidade de consumo. Essa situação degringolou para especulações abusivas e fechou o seu ciclo com a maior crise sistêmica da economia mundial, que foi a quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, ano em que Baudrillard nasceu.
Esse fato vertiginoso, causado essencialmente pela falência de uma virtude tida como basilar, levou as forças do mercado a investirem na substituição da lógica hiperbólica do trabalho pelos argumentos do consumo, que predominaram por toda a segunda metade do século XX. Criar demanda por meio de imagens que descrevem ausências simuladas passou a ser a chave da ordem do segundo salto: “O consumo dignifica o homem”. Onde a hiperrealidade? No consumismo, que, sobrepondo ao real a própria representação da realidade, fez com que as pessoas continuassem trabalhando exaustivamente, não mais para se dignificarem com o trabalho em si, mas para serem dignificadas pelo poder de consumo. Resultado: mais ansiedade e insaciabilidade do que satisfação de necessidades, desejos e interesses pessoais. Foi nesse período que Baudrillard desenvolveu sua obra de contestação a essa ironia do excesso de realidade que é a aparência.
A morte de Jean Baudrillard, neste mês de março de 2007, manifesta-se em minhas impressões como sincronia ao tempo de desaparição da própria sociedade de consumo que ele tanto combateu. Caso a minha ponderação tenha sentido, posso dizer que ele nasceu e morreu nas duas fronteiras de tempo do seu objeto de estudo e inquietação. As impulsões da realidade de fachada foram postergadas pela prática compulsiva do que seria a felicidade instantânea, segundo a descrença na moral e na hierarquia de valores. O arranjo social para o terceiro salto já está em curso: “A esperteza dignifica o homem”. Onde a hiperrealidade? Na superexposição do quanto é possível se dar bem pelo caminho da artimanha, tendo como referência o comportamento cínico de parte significativa das elites políticas, econômicas, intelectuais, da justiça e do crime organizado. Resultado: enfraquecimento da força estabilizante dos papéis-modelo sociais e busca desatinada pela satisfação imediata da vida. Sobreviver parece mais adequado do que viver, quando não há valores e não há sentido da realidade do vazio, da falta de perspectiva.
A carga de frustração generalizada, causada pela inexistência de chance de realização da felicidade no consumismo, sofisticou o embrutecimento e fez emergir o juízo de unilateralidade, a atitude do cada um por si, na ânsia de sobrevivência em um cotidiano sem restrições. A deificação da esperteza força um tempo de niilismo. E o que a hiperrealidade midiática tenta nos provar a cada instante é que todos os valores e crenças norteadores do convívio humanizado são infundados e que a própria existência é totalmente inútil. O niilismo considera a ética irracional e indefensável. Esse sentimento, instalado na alma atordoada das vitimas do simulacro tende a aceitar a idéia de que as condições sociais são tão impraticáveis, que não há o que fazer senão destruí-las, mesmo sem que se vislumbre qualquer opção construtiva para substituí-las.
“O trabalho dignifica o homem”, “O consumo dignifica o homem” e “O niilismo dignifica o homem”…
“Cuidar do meio-ambiente dignifica o homem”