HIPOCRISIA – É bom dia mesmo, família?
Artigo publicado na RIVISTA do MINO nº170 (Editora Riso), p. 4
Edição de maio de 2016 – Fortaleza, Ceará, Brasil
FAC-SÍMILE
Um dos indicadores de comportamento social problemático presente na vida brasileira que mais têm chamado a minha atenção é o uso indiscriminado da expressão “Bom dia, família”. Vira e mexe e encontramos um grupo de rede virtual de relacionamento marcado por esse tom tão hiperbólico quanto cheio de hipocrisia.
O escancaramento da falsidade normalmente invisível nesse cumprimento usual ocorreu em transmissão televisiva ao vivo para todo o país, no dia 17 de abril de 2016, durante a votação na Câmara Federal que aprovou a admissibilidade do impeachment de Dilma Rousseff na Presidência da República.
Mais do que dar motivos para a instituição do dia 17 de abril como o Dia da Farsa no Brasil, esse acontecimento revelou um transtorno social muito maior do que o impedimento de um mandato sem crime devidamente tipificado, comandado diretamente e de modo surreal por um réu do Supremo Tribunal Federal (STF).
Refiro-me ao transtorno provocado pela constatação do avanço sem freios da moral religiosa sobre a moral social, sobretudo aquela que vem fermentando a massa crítica do Estado Evangélico em acelerado crescimento no país. Nesse curso de deformação política, é triste ver parte significativa da juventude, normalmente tida como revolucionária, às voltas com um estado de fanatismo ideológico conservador.
Religião é coisa de foro íntimo, de dogma e de mistério, não cabendo como fingimento político ou ideário de partidos. Não que haja qualquer surpresa sobre a força plutocrata que domina o país ao longo de séculos, situação em que nomes hierárquicos como o do deputado Artur Virgílio BISNETO não me deixam mentir. O horror na fala tautológica dos parlamentares é a associação que se pode fazer daquela emoção hipócrita com o “Bom dia, família”, das redes sociais.
Em nome de Deus, da família e da terra natal, deputadas e deputados violaram descaradamente o calendário eleitoral, tornando público que, apesar de termos 35 (trinta e cinco) partidos formalizados no TSE, não dispomos de um sistema partidário com o mínimo de responsabilidade democrática. Cada sigla tem seus donos, e que se lixe o interesse público.
As lideranças políticas que extraviaram a identidade da esquerda nos últimos anos, ao se igualarem com os tradicionais corruptos que prometeram combater, são as principais responsáveis pelo que pode vir a ser o fim de um ciclo em que a base da pirâmide social reduziu seus índices de miséria e pobreza; já que da direita sem projeto de país é difícil esperar algo além do egoísmo social concentrador que a caracteriza.
O grande desafio neste momento de esdrúxula ruptura democrática é o da separação entre a limpeza que precisa ser feita dos dejetos mentais expelidos pela maioria dos parlamentares e a preservação do Congresso Nacional, enquanto instituição necessária ao equilíbrio da nossa vida política.
No golpe militar que depôs o Presidente João Goulart, na madrugada do dia 1º de abril de 1964 (Dia da Mentira), os golpistas valeram-se da ameaça comunista pregada na Guerra Fria de um mundo polarizado entre os Estados Unidos e a ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, mas não houve justificativas de desonestidade no governo. Já o golpe parlamentar contra o governo Dilma Rousseff teve lá seus lances de aversão ao bolivarianismo, mas o que contou mesmo foi a vulnerabilidade do esquema de corrupção em que o Partido dos Trabalhadores se meteu.
A malandragem da impunidade é um know-how sedimentado há cinco séculos; coisa de profissionais da política bandida como Roberto Jefferson, o estopim do Mensalão, e Eduardo Cunha, a bomba do Impeachment; figuras fortalecidas politicamente nos governos Lula e Dilma, contra os quais dispararam seus arsenais de destruição quando, por disputa de poder, foram desonrados na moral criminosa de alto nível que move cada um deles na triste vida política que os une.
Sem qualquer senso de responsabilidade cidadã e sem pensar no que tudo isso significa, muitas pessoas soltaram fogos digitais pela derrota do governo nas redes sociais, com estridentes “Bom dia, família”, alinhando-se às vozes dissimuladas do plenário no que estas representam de mais infame. Diante de tais cenas de hipocrisia explícita, tenho a impressão de que a gravidade do momento brasileiro pede a pergunta: É isso mesmo, família? É mesmo bom dia?