Eu estava participando de uma conversa sobre a cidade de Fortaleza com crianças do bairro Vila Velha quando um menino de mais ou menos oito anos me questionou sobre a razão que me levou a escrever um livro sobre a história de Fortaleza – “Fortaleza – de dunas andantes a cidade banhada de sol” (Cortez Editora) – se ele tinha visto na minha biografia que eu nasci em Independência. E me desafiou: Então, por quê?
Argumentei que tinha vontade de escrever um livro sobre Independência, mas falei da dificuldade de fontes de pesquisa e que, a bem da verdade, eu não sabia sequer porque aquele lugar tinha o nome que tem. As referências quanto à toponímia falam de um rio que teria esse nome e que cruzava a região, ainda que não existam mapas com o nome de um rio ou riacho chamado Independência ali pelo sertão dos Inhamuns ou pelo vale do rio Poti.
Fiquei com aquela provocação na cabeça. É certo que tenho o título de Cidadão de Fortaleza, que adoro esta cidade e que já passei a maior parte da minha vida na capital; contudo, as minhas raízes estão mesmo é em Independência, no interior, no sertão. Aquela criança mexeu com os brios da minha infância; uma infância órfã de conhecimento do nome do lugar onde brincou. Resolvi procurar por essa origem e deparei com grandes e envolventes fatos e feitos da história do Brasil, protagonizados por nativos, negros e caboclos cearenses, piauienses e maranhenses unidos por aspirações de liberdade.
Convidei um amigo escritor piauiense, de Oeiras, o Augusto Rocha, e o meu filho Lucas Paiva para que me ajudassem a descobrir os motivos, sentimentos e intenções que levaram os meus antepassados a chamar de Independência o antigo povoado de Pelo Sinal. Isso em meados do século XIX, quando a parte desse território que integra a bacia do rio Poti, no sertão oeste cearense, ainda pertencia ao Piauí. Percorremos de carro lugares-chave dessa história, como Campo Maior e Parnaíba, no Piauí, e Caxias, no Maranhão. Tudo no mês de fevereiro deste ano (2020). Retornamos exatamente no momento em que estourou a pandemia do coronavírus. Mas daí eu já estava bem municiado das informações colhidas em entrevistas e na rica bibliografia consultada e, com isso, escrevi “Toque de avançar. Destino: Independência” (Armazém da Cultura).
Como sempre tenho tendência a combinar literatura com música em meu trabalho, o caso deste livro não foi diferente. O meu parceiro para a canção tema da narrativa precisava ser alguém que tivesse vínculos diretos com o espírito da obra. Lembrei-me do Edvaldo Santana, que, além de ser um artista admirável, já é meu parceiro em outros trabalhos e filho de nordestinos – a mãe pernambucana e o pai piauiense. O Edvaldo nasceu na zona leste de São Paulo, em São Miguel Paulista, uma grande comunidade periférica de povoamento nordestino, e tem orgulho do lugar onde nasceu, das origens e dos antepassados. Foi então que compusemos em parceria uma cantata tangerina que, por meio de interrogações, afirma a necessidade de não deixarmos que se apaguem os rastros do passado nos caminhos que temos pela frente.
Em Toque de Avançar procuro realçar que o nome de um lugar é uma mensagem e uma expectativa de destino. Depois de me aprofundar no que aconteceu há quase 200 anos com a legião popular formada por cearenses, piauienses e maranhenses para derrotar o exército lusitano – o que assegurou, entre outras conquistas, que o Brasil não perdesse a Amazônia para Portugal – foi que passei a compreender e a valorizar mais a memória dos nossos antepassados. Com esse livro, misto de ficção e de micro-história, pretendo, antes de tudo, contribuir para que percebamos que Independência não é apenas um lugar, mas uma ideia substancial de busca destemida do bem viver com dignidade, senso de justiça e força transformadora.
A expressão “toque de avançar” é uma comunicação de corneta em campo de batalha que sinaliza a determinação de ir para frente, de encarar o inimigo sem medo, como faz o tocador de pife que vira corneteiro no enredo que desenvolvi. E o maior inimigo da independência brasileira que ainda não se consolidou são os filtros da derrota, da inferioridade, da impotência e do modelo mental de colonizado que insistem em impedir que acreditemos em nós mesmos e no que somos capazes de realizar; e que descubramos partes significativas, mas muitas vezes abafadas da nossa história. Assim, a nossa existência tende a ser traída por uma falsa relação de semelhança entre colonizados e dependentes, habitantes do semiárido e subdesenvolvidos, isolamento geopolítico e falta de perspectivas.
Acredito que no livro “Toque de Avançar. Destino: Independência”, a leitora e o leitor juvenil poderão encontrar cumplicidade na essência poética e nômade da literatura, da pintura e da música para percorrerem, lado a lado com os personagens, acontecimentos dramáticos em uma narrativa que convida a pensar sobre o que é ser pequeno ou grande, fraco ou forte, sonhador ou realista. Essa possibilidade me deixa contente por compartilhar o que aprendi com os que vieram antes de nós, sua bravura, determinação e coragem movidas por desejos de viver em um país livre de devassas coloniais; missão ainda extremamente necessária. Espero que seja este o destino dessa aventura.