Infância na rede
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 09 de dezembro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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O mundo social virtual está cada vez mais frequentado por crianças, o que faz da internet um campo de interesse especial dos agenciamentos de enunciados mercadológicos. Produtos, expressões e marcas assediam a infância na rede com sofisticado jogo de espelhamento de vendedor e consumidor, confundindo papéis e forjando nas telas dos computadores, celulares e tablets uma nova simbiose criança-consumo.

Entidades da sociedade civil e órgãos governamentais atentos às relações indutoras do consumismo têm agido de forma a inibir essas ações de marketing quando elas atingem as crianças, sendo ou não voltadas para elas. A partir de denúncias espontâneas, o Instituto Alana moveu em 2015 diversas ações jurídicas na tentativa de combater abusos das corporações no ambiente da cultura digital.

Campanhas publicitárias como as da Biotropic Cosmética, McDonalds e Foroni, que abusaram da insuficiência de julgamento das crianças para vender seus produtos na internet, ao enviarem produtos para youtubers e streamers infantis a fim de que estes atuassem como promotores de venda em seus canais de relacionamento, acabaram respectivamente no Procon, Ministério Público e Defensoria Pública do Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro.

Streamers, jogadores de times de games que atuam ao vivo em canais do tipo Twich.tv e Azubu.tv, e youtubers, produtores de vídeos de unboxing postados no YouTube, desembrulham emocionados os “presentes” que recebem diretamente dos fabricantes, reforçando as pressuposições recíprocas do jogo e da propaganda e antecipando o que eventualmente seria para a criança o sabor de abrir a embalagem para ter a surpresa do brinquedo.

Tempos atrás foram grandes os problemas enfrentados pelas empresas que enviavam jabá a blogueiros de sucesso, futurando contrapartidas comerciais, porque os que não recebiam nada passavam a falar mal dos produtos e das marcas envolvidos na transação. No novo formato dessa prática de suborno recebe os mimos de marketing quem avança de nível em categorias previamente definidas por cotas de milhões de seguidores: “Seu canal obteve um crescimento incrível (…) Estamos te enviando um presente especial”, diz a carta que um youtuber recebeu junto com um console de PS4.

Assim, como ocorre nos testemunhais de cura do mercado televisivo da fé, meninas e meninos gravam, com a cara feliz de quem conquistou algo há muito desejado, cada detalhe da abertura de seus brindes, ao tempo em que indicam o link de como adquiri-los. Em alguns casos, esses canais sugerem doações em dinheiro, oferecendo recompensas que vão desde a citação do nome do usuário no letreiro que passa no rodapé da página à publicação de mensagens que, dependendo do valor pago, podem até ser ouvidas em voz eletrônica.

Que a infância caiu no mundo virtual é um fato sem volta. A pergunta é como regular os usos dessas ferramentas digitais e de conexões para que meninas e meninos possam brincar livremente na rede. O que não faz sentido é deixarmos de explorar as potencialidades oferecidas pela internet, deixando as crianças entregues à saliva da comunicação mercadológica, simplesmente porque ainda não nos dispusemos a ocupar os espaços baldios da rede com atrações edificantes.