O que antes para mim era apenas uma sensação, agora tornou-se uma percepção clara: a infância é uma morada que une todas as crianças em seus mundos de brincadeiras. Vão-se os anos, passam-se os tempos e constroem-se caminhos, mas, observando isso ou não, nunca deixamos de habitar a nossa meninice. O endereço permanente da existência é a infância, e ela também tem uma morada, que é o lugar onde cada menina e cada menino apreendem o mundo pelo ato de brincar.
No último dia do ano de 2021 revi o lugar onde passei dias luminosos da minha primeira infância, em um reencontro com a criança que fui; aquele menininho que viu tudo do que me recordo sobre os anos que passei na localidade de Poço Comprido, na divisa dos municípios de Independência e Tauá, no sertão dos Inhamuns. Acontecimentos que se transformaram em lembranças e pensamentos.
O dia estava lindamente chuvoso. Sabíamos que no caminho havia passagens em solo liso e grudento de massapê, mas, depois de quase seis décadas sem transitar por ali, não imaginávamos que fosse tanto. O certo é que, faltando dois quilômetros para chegar, só conseguimos sair de um atolamento medonho com a cumplicidade de pessoas sempre dispostas a destravar o que move o viver, como é comum no interior. Deixamos o carro na estrada e seguimos descalços.
A paisagem da terra onde eu brinquei foi chegando e meu coração foi se abrindo como uma semente a brotar. De um lado, o alto da serra, e, do outro, os baixios do riacho da Carrapateira. Meu pai, que gostava de enxergar tudo com grandeza, chamava de Fazenda Montanha aquele pequeno terreno que comprara para ter onde fazer o manejo da criação.
A cada passo que dávamos, nos aproximávamos mais da dúvida sobre se a casa onde moramos ainda estaria lá. Na andança encontramos pessoas que conheceram meu pai e que reconheceram a minha mãe; pessoas que falaram de reminiscências e confirmaram a permanência do nosso destino. Sim, aquele foi o lugar que me apresentou a ordem de sentido do mundo, e onde aprendi a ver a vida com amor.
A casa de taipa ainda está inteira e pacientemente voltada para o nascente, o ponto do horizonte de onde vêm os relâmpagos que anunciam as chuvas e de onde o sol chega toda manhã anunciando o dia. Aquela imagem me trouxe a consciência de que também tive uma infância virada para o nascente; uma infância alumiada pela labuta dos meus pais, pelo canto dos pássaros e pelo zumbido das abelhas no bebedouro do cacimbão.
Episódios comoventes e reciprocamente articulados tomaram conta da minha memória. Ouvi o som do rádio Semp tocando no alpendre nas noites de luar e senti a quietude do céu de noites estreladas. Lembrei-me do dia em que, distraído tangendo os animais, tive a impressão de que alguém chegava para me abraçar e lancei-me sobre uma touceira de xique-xique, ficando com o corpo preso aos espinhos e, depois de tudo, recebendo um ardente banho de álcool para evitar infecções.
Uma das maiores alegrias que eu tinha era nos finais de semana, quando meu pai ia de motocicleta pegar o meu irmão, que estudava em Independência, para a gente brincar juntos. Durante a semana eu fazia o que uma criança faz quando o que tem para brincar é o barro, a mata seca ou verde, os bichos, os insetos, as pedras, enfim, a terra que nos dá toda sorte de sustento. Tudo isso construiu o conjunto referencial da minha morada de infância, de onde, sem me distanciar, parti para onde deu vontade de ir.