Informática nas escolas
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 16 de Agosto de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Na reunião técnica de validação das propostas apresentadas no Fórum Ceará 2027, realizada na sexta-feira passada no Palácio do Governo, o professor Tarcísio Pequeno, coordenador do Laboratório de Inteligência Artificial da UFC chamou a atenção para o tratamento dado em recorte separado ao tema “inclusão digital”, quando este assunto, segundo ele, deveria estar contido no conjunto de proposições para a “inclusão social”. Por considerar o acesso à tecnologia um meio para a inclusão social e não um fim em si mesmo, o pesquisador realça o oculto do aparente que há no conceito “inclusão digital”, ao afirmar que essa expressão é uma criação do marketing dos fabricantes e vendedores de produtos e serviços de tecnologia da informação.
A operação da formação de sentido efetuada pelos processos comunicacionais a fim de produzir interferências na legislação, nas políticas públicas e nas práticas sociais cotidianas é um fato na sociedade de consumo. A revista Época desta semana (13/8/2007) traz uma ampla reportagem sobre “inclusão digital”, na qual chega a mostrar que as crianças, atendidas pelos programas de uso de computador portátil individual nas escolas, consideram o momento de receber seus laptops como mais esperado do que a hora do recreio.
A necessidade de uso da tecnologia digital nos processos educacionais é indiscutível. O problema é que o tema da “inclusão digital”, no que diz respeito à educação, não está posto pela força de propostas pedagógicas inovadoras, mas por uma pressão do mercado, o que coloca a escola na condição deplorável de mero ponto de venda. Sem uma discussão mais aprofundada sobre isso, a informática nas escolas tende a, via de regra, continuar sendo tratada como simples transação comercial e os estudantes como potenciais consumidores de páginas eróticas e de programas e jogos de violência, sem contar com a utilização da rede para fazer trabalhos copiados e formação de gangues.
Introduzir simplesmente o computador na escola, sem uma preparação educativa prévia ou simultânea, pode resultar em usos desaconselháveis como tem ocorrido com as máquinas domésticas, largadas nas mãos de crianças, adolescentes e de adultos tecnicamente hábeis, mas socialmente despreparados. O aumento da delinqüência entre os usuários de computadores mostra que sozinha a máquina não pode tanto assim. Mesmo quando muito bem programada, a máquina é apenas uma máquina. O computador, assim como a televisão, nunca deveria ter recebido a função de babá ou de educadora. Ela e ele não têm como serem eficazes exercendo esse papel de pais e de educadores.
Sozinha, sem uma ética humana por perto, a máquina acaba sendo um instrumento de dissolução social, de produção de nerds, como têm sido denominadas as pessoas que, pelo isolamento e complexas questões existenciais, desenvolvem intensa relação de intimidade com os computadores. Não por culpa da máquina, mas por reflexo das nossas vulneráveis circunstâncias psicossociais, a Internet virou um grande divã de delações do nosso inconsciente coletivo. Exemplo disso é o fenômeno da música “Vai tomar no c…” (Cris Nicolotti / Cacá Bloise), que na rede (de computadores) aparece com as duas letras da velha alcunha de ânus. E toda a música é uma tautologia do próprio título. Antes de começar, o cerimonial anuncia: “Quando você manda tomar no c… pela primeira vez, você vai retomar as rédeas da sua vida”. E faz o chamamento: “Comigo irmãos!”. Essa purgação influenciou a produção de dezenas de videoclips no YouTube.
Os estabelecimentos de ensino, além de ambientes pedagógicos, tiveram que assumir a função de cuidado e apoio afetivo exigido pelos novos tempos. Para suprir uma demanda que não estava no seu escopo original muitas escolas repetiram o equívoco de muitas famílias e passaram a delegar à televisão e ao computador o papel de educadoras e educadores eletrônicos. É mais barato e mais cômodo, mas é anti-educacional e faz o jogo ardiloso de, em nome da “inclusão digital” preservar a exclusão social, pelo desenraizamento, pela alienação. A tecnologia não é neutra; ela reformula os elementos dos ambientes onde é inserida. Por isso, precisamos, governos e sociedade, nos esforçar para entender o que significa essa interferência e como ela deveria ser tratada, a fim de colhermos mais resultados positivos do que negativos.
A psicolingüista argentina Emília Ferrero tem ponderado a euforia da “inclusão digital”. Em entrevista a Simone Iwasso (“Internet na escola não resolve problemas, cria novos”, OESP, 23/10/2006), ela destaca como positivo o uso do computador na condição de processador de textos. Além de socializar a revisão de textos esse exercício permite o desenvolvimento de uma postura de responsabilidade frente ao próprio argumento, possibilitando uma boa repercussão cognitiva. Quanto ao uso da Internet, Ferrero lembra que no ciberespaço é muito fácil se perder e que o desafio da pedagogia é “manter o objeto da busca diante de uma multiplicidade de opções”. Outro desafio pedagógico citado por ela é o da preparação dos estudantes para saber escolher respostas confiáveis entre as inúmeras ofertas que surgem nos buscadores.
O ponto principal abordado por Ferrero é que na trama da rede mundial de computadores a procura por respostas deve ser antecedida por discussões que facilitem a elaboração das perguntas. O impacto da tecnologia na educação tem sido estudado também por Lowell Monke, professor de educação da universidade norte-americana de Springfield. Com base em um estudo recente da Universidade de Munique, Alemanha, feito com estudantes de 31 países, ele avisa que os usuários mais freqüentes de computador apresentam resultados escolares piores.
Monke reconhece que a instalação de laboratórios de informática nas escolas pode significar acesso a informações que os estudantes jamais conseguiriam obter por outros meios, mas alerta que também pode significar que as crianças passem menos tempo brincando ao ar livre (FSP, 25/10/2007). Ele ilustra a sua observação contando que não há comparação entre um leitor jovem encontrar na internet informações sobre minhocas e experimentar pegar nelas cavoucando a terra. “É isso que infunde um sentimento de reverência a uma descoberta”.
A corrente que defende a habilitação imediata da Internet nas escolas brasileiras aduz que ela melhora o desempenho dos alunos no aprendizado de inglês, ciências e design. Como já frisei, a tecnologia não é neutra. Pelo imenso mercado, de mais de cinco milhões de computadores por ano que o Brasil representa, deveríamos nos impor mais na hora de comprar computadores. Que essas máquinas, seus programas e catálogos, pelo menos fossem traduzidos para o português.
Robert Bracewell, da Universidade McGill, do Canadá, defende que a relação constante com o computador “estimula a criança a se acostumar desde cedo a buscar respostas sozinha” (Época, 13/8/2007). Esse é o ponto crítico levantado por Lowell Monke. Ao contrário de Bracewell, ele defende que a criança não possui capacidade moral para fazer bom uso dos equipamentos digitais. Para ele, a instantaneidade com que o computador resolve certas situações reforça o conhecimento abstrato em detrimento do aprendizado prático, em cuja vivência educacional podemos aprender com o mundo e não apenas sobre o mundo. Saber trabalhar essa dimensão, contando adequadamente com a tecnologia digital, é a parte instigante do que Emília Ferrero chama de novo problema.