A música tem sido uma das principais companhias para quem está praticando o recomendável distanciamento social físico, por conta da pandemia da Covid-19. É até difícil imaginar como seria esse confinamento preventivo sem música por perto. Entretanto, a presença dos sentimentos e das emoções musicais no cotidiano é tão natural que nem sempre nos damos conta de que alguém que cria e alguém que interpreta o que ouvimos é alguém que tem contas a pagar.
O senso comum também se deixa levar pela ideia de sucesso dos artistas da indústria do entretenimento, não atentando que no mundo da música existem os profissionais autônomos e os artistas independentes, diretamente atingidos com as corretas medidas de cancelamentos de apresentações presenciais. Nesse contexto, cabe às pessoas que entendem a música não apenas como um recurso de bem-estar na quarentena, mas de toda a vida – das cantigas de ninar aos réquiens –, agirem em suas áreas de influência, contribuindo para resolver esse problema.
Em casa, os artistas estão inventando coisas, produzindo lives colaborativas, vídeos compartilhados, catálogos virtuais, performances, cursos pelas redes, participando de editais de socorro e outras maneiras de seguir produzindo à distância. É importante que continuem assim, dado que, seja qual for a nova sociedade que virá pós-coronavírus, ela também não viverá sem música. Portanto, que se lance mão do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos do país e das reservas de contingências das corporações de entretenimento para contornar essa situação emergencial. Não há como assegurar a continuidade da produção de trilhas sonoras das alegrias e dores humanas se os músicos desaparecerem.
Tomo como referência três grandes ondas da evolução do modo de ouvir música para demonstrar o seu caráter perene. Quando o rádio chegou, houve um temor de que, tendo acesso à música por meio de programas radiofônicos, as pessoas deixariam de ir ao teatro. No advento do disco o sentimento de ameaça voltou sob o argumento de que, levando a música preferida para casa, as pessoas estariam satisfeitas e não mais pagariam para frequentar casas de shows. Tudo, no entanto, teve efeito contrário. E no atual sistema de plataformas de música digital esse potencial aumentou, mas a maioria dos artistas continua marginalizada.
A precarização do artista brasileiro – e isso vale para todas as linguagens e expressões artísticas – intensificou-se com o ideário neoliberal associado à economia criativa e ao Creative Commons (Criativo, como?). Enquanto um incutia na cabeça dos artistas que eles deveriam “ser os seus próprios patrões”, transformando o tempo do devaneio em gerenciamento de carreira, o outro fomentava a discórdia dos usuários de conteúdos contra os autores, forçando desapropriação de direito em favor das corporações do mercado digital.
Para escapar dessas armadilhas, a música independente precisa seguir a pauta da alimentação orgânica, que atuou em nichos até conquistar gôndolas exclusivas nos supermercados pela capacidade de se impor. O aprofundamento das adversidades atuais tende a forçar a criação de roteadores de cultura, capazes de encaminhar ofertas e demandas entre artistas e público, assegurando alegria, contemplação e revolta para um mundo mais justo e mais humano. A sociedade necessita de trilha sonora, de motivo condutor (Leitmotiv) para avançar sem perder a memória dos acontecimentos. Esse é um dos papeis da música.