Itaytera e a fonte Cariri
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 20 de maio de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Na Chapada do Araripe existe uma pedra no rio Batateiras que, segundo a lenda, represa as águas de um lago encantado. Um dia, essa pedra rolaria, deixando jorrar tanta água que inundaria o vale do Cariri. Inspirados nessa narrativa indígena, intelectuais do Crato criaram em 1954 a revista Itaytera, um ano após fundarem o Instituto Cultural do Cariri (ICC), nos moldes das academias francesas de arte e cultura da época.

Em seis décadas foram publicadas 44 edições desse registro de ideias caririenses, sendo a última no ano 2000. Agora, 15 anos depois dessa parada, o atual presidente do ICC, Emerson Monteiro, está com os originais prontos para imprimir uma nova edição da Itaytera. No sábado passado (16) ele, juntamente com meu velho amigo Francisco Silvino, compositor e professor de Direito da Universidade Regional do Cariri, me mostrou os escritos da nova edição.

Trata-se de textos curtos, leves, bons de ler e que abordam valiosos assuntos do Cariri, numa mistura de atualidade com reminiscências e busca voluntária por reconhecimento de essências culturais. Essa revista-livro trará fartos e curiosos relevos dos modos de pensar, perceber e argumentar de intelectuais e poetas, comentadores e intérpretes da região, mantendo o conceito editorial de preservar a cultura do Cariri.

Há escritos sobre troncos petrificados da extinta floresta tropical existente na região milhões de anos atrás e sobre fauna e a flora, incluindo referências a estudos do biólogo e compositor Paulo Vanzolini e pesquisas do inquieto agrônomo Rui Simões de Menezes. A passagem do médico e botânico inglês George Gardner pelo Cariri, entre 1836 e 1841, registrando suas impressões a respeito dos modos de relacionamento das pessoas, é outro conteúdo da nova edição.

Os textos a respeito de política têm entre suas novidades o relato de um assessor de Miguel Arraes, que estava no Palácio do Campo das Princesas com o governador pernambucano nascido no Cariri, no momento do Golpe Militar de 1964. Muito interessante também a parte que fala das ameaças de prisão sofridas pelo Padre Ibiapina, em situações como a que ele apoiou o movimento sedicioso denominado Quebra Quilos, contra o pagamento de impostos pelo uso do chão da rua por parte do município.

A Itaytera nº 45 abre espaço ainda para posicionamentos sobre temas polêmicos atuais, como o debate pautado pelos insensatos esforços de redução da maioridade penal. E por falar em polêmica, a revista mostra um caso de desavença ocorrido no passado, coisa de 160 anos atrás, entre um vigário e um delegado, e acompanhado pelo jornal O Araripe, do jornalista João Brígido.

Em uma crônica referente ao grande pintor paisagista telúrico brasileiro Vicente Leite, nascido no Crato, aparecem revelações como a de que na infância ele gostava de desenhar nas calçadas e paredes e que seu pai era chamado de Félix Fogueteiro, por ser fabricante de fogos de artifício. A edição traz ainda causos fantásticos envolvendo os mundos de Allá e do Padim Ciço e uma carta toda redigida em versos e destinada ao poeta Patativa do Assaré, com a devida resposta poetizada.

Entre poemas, crônicas, resenhas de livros, registros de efemérides, menções a autoridades e atrações turísticas, há a explicação sobre a origem do nome do Riacho da Brígida, constante na carta geográfica caririense. Pelas páginas da Itaytera encontra-se até o relato de uma caçada a um tamanduá-bandeira, feita por Jósio Araripe, pai dos jornalistas Flamínio e Zínia e do compositor e publicitário Tiago Araripe. E, como não poderia ser diferente, a revista fala de temas ligados ao fenômeno do Padre Cícero.

A retomar o fluxo de publicação dessa revista, o Instituto Cultural do Cariri encontra um jeito de corresponder a si mesmo, enquanto entidade regional, evocando pontos de contato entre acontecimentos e reflexões, contribuindo assim para que as lembranças passem em vão e as expectativas do futuro não se resumam a indagações sobre o destino. O trânsito dos pensamentos e sentimentos nas páginas da Itaytera sugerem identificações que se estendem desde as abordagens da infância até o pragmatismo da razão política.

Trabalhos como esse do ICC demonstram que o mundo das ideias não desaparecerá enquanto houver quem esteja em condições e se disponha a recordar e a falar do que vê, sente e sonha. Voltar a dar sequência com a publicação da Itaytera expressa uma preocupação com a existência, com a resistência aos fatores replicantes do imediatismo, do efêmero e do presentismo, destituído de interesse pelos argumentos e temas intrínsecos, arraigados pelos sentidos de origem e de destino.

Viver, reconstituir, inventar olhares, afirmar aspectos da memória coletiva, sem amarras epistemológicas ou necessariamente atreladas a eventos da historiografia oficial, é uma das características desse livro-revista. Guardar e entrelaçar fragmentos de mentalidades, acontecimentos e recordações descritas com particularidades por cada autor parece ser o espírito dessa publicação que não se rende à força do esquecimento.