Jogos de estímulo à fobia social
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.6
Quarta-feira, 09 de outubro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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O sucesso internacional de lançamento do videogame GTA, no qual, além de obrigatoriamente assumir uma personalidade marginal, os jogadores recebem missões para superar as adversidades por meio da prática da violência, é mais um componente de estímulo à fobia social tão presente nos dias atuais. O caráter transgressor dos personagens desse tipo de jogo é sempre inspirador para quem enfrenta a angústia do crescimento e para quem tem dificuldade de lidar com as vulnerabilidades típicas de uma sociedade em crise de significados.

Depois de horas e horas diante da tela, matando prazerosamente, não resta muito o que esperar da vida comum, senão a sua espantosa repulsa. Entre o desalento e a adrenalina, é da natureza constitutiva do sujeito a inclinação pelo que produz emoção. Nos jogos de estímulo à aversão social, a escolha dos prazeres se dá em um estado de apatia consciente, que ocupa o vazio do ser com o vício da poética do sangue explícito e do gozo de matar. A fragilidade da estrutura emocional é um arquivo propício à proliferação de vírus maliciosos de uma velha estrutura comercial, agora montada em sistema multimídia.

O GTA, em sua quinta versão, promete ação, voyeurismo e atitudes vendidas como símbolos de liberdade, em um molho de possibilidades de sobrevivência, com golpes audaciosos, compras de roupas, customização de carros, assaltos a bancos e a joalherias, enfim, entre o sublime fake e a ganância desmedida. Um dos destaques desse videogame de aspiração cinematográfica é que o jogador pode chamar a si tanto um assaltante entediado quanto um jovem de periferia que quer subir na vida a qualquer custo ou um agressivo viciado em drogas, para experimentar o que é sobreviver na delinquência.

A propaganda do GTA 5 diz que este é o game mais caro já produzido, que o jogo custou 266 milhões de dólares, mais de meio bilhão de reais, e que é um sucesso de vendagem. Só não diz que ele vende mesmo é a padronização da mente a um processo de mundialização de conceitos desumanos. Não é à toa que seu principal financiador é a indústria de fabricação de armas. Essa situação não está, entretanto, presente apenas nos jogos eletrônicos; ela está implícita desde o merchandising nos livros paradidáticos aos shows escolares do palhaço Ronald McDonald, e explícita nos golpes escatológicos das lutas de MMA, transmitidas como oferta sórdida de libido em forma de espetáculo romano para a arena da tevê.

Este tipo de prática comercial com sérios fatores de risco para a saúde física e mental das pessoas tem um exemplo concreto no passado: a ação da indústria do tabaco, quando esta patrocinou grandes astros do cinema para promover o consumo de cigarros, o que resultou em toda uma geração de vítimas de câncer de pulmão e de doenças cardiovasculares. A sensualidade do cigarro levado aos lábios, a sublimação da tragada, a baforada relaxante e os anéis de fumaça eram irresistíveis, como estimulação correspondente ao desenvolvimento cognitivo, afetivo e emocional.

Por trás de tudo isso estavam contratos milionários para que atrizes como Ava Gardner, Bette Davis, Marlene Dietrich, Rita Hayworth e atores como Humphrey Bogart, John Wayne, Jean-Paul Belmondo, Marcello Mastroianni, Sean Connery, Henry Fonda e até o ator-dançarino Fred Astaire fumassem publicamente. Havia nessa conduta um aspecto de charmoso rompimento comportamental, patente também nos filmes da Disney, nos quais o cigarro aparece vinculado a personagens transgressores, tais como a raposa João Honesto e o gato Gedeão, no filme Pinóquio (1940), e o Capitão Gancho em Peter Pan (1953).

Nos primeiros versos do seu irado e lírico poema Uivo (Ed. Globo, SP, 2012), dedicado “aos fodidos anônimos & miseráveis sofredores & hipsters de cabeça feita”, Allen Ginsberg (1926 – 1997) diz que viu as melhores inteligências da sua geração destruídas pela loucura (p. 17). Seu desabafo contra a sociedade desumanizante ajusta-se plenamente aos dias atuais, pois, pensando bem, “todo dia está na eternidade” (p. 196). E hoje, a marginalidade dos bem-de-vida começa a mostrar a cara em filmes como Bling Ring: A Gangue de Hollywood, de Sofia Coppola, em cartaz no cine Dragão do Mar/Fundação Joaquim Nabuco, em Fortaleza, que ressalta a obsessão por objetos de grife e o narcisismo de um grupo de adolescentes que assaltava casas de celebridades.

A questão é de saúde pública, com antecedentes de abandonos culturais. Não gosto da ideia de proibição. A classificação indicativa está lá: 18 anos. A mim, me parece mais razoável o uso da mesma tecnologia para produzir alternativas aos games que estimulam a fobia social. O jogo como recurso cerebral capaz de quebrar a estrutura do tempo e de permitir a incorporação da realidade em seu alcance de multivariabilidade é uma ferramenta maravilhosa. Resta descobrir quem está disposto a investir tempo e dinheiro em favor de outras referências de vida. Muitas vezes, o impulso que nos separa da inércia é o impulso do medo de dizer não a nós mesmos.