Justiça social sem segregação
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 17 de Janeiro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O Brasil inicia neste ano de 2013 o acesso sistemático e progressivo de estudantes egressos das escolas públicas às universidades também públicas, no primeiro momento com percentual de 12,5% e com expectativa de chegar a 50% das vagas em quatro anos. Está rompido o vício da concorrência desigual de acesso que fazia com que os benefícios do ensino superior público fossem destinados basicamente a estudantes de escolas privadas.
Evoluímos de uma proposta ancorada originalmente em aspirações humanitárias voltadas a parâmetros raciais discriminatórios para a predominância de uma visão mais ampla de justiça social, mais adequada ao contexto das desigualdades brasileiras. O apelo à segregação e à defesa de cotas, ainda resistente em algumas correntes moralizadoras, foi fundamental para colocar o tema em pauta e abrir caminhos para a construção de alternativas.
Ainda levaremos um bom tempo para ajustarmos critérios de seleção, ofertas de vagas e outras medidas necessárias ao funcionamento do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), conforme o texto da lei 12.711, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em 29/08/2012. O maior entrave aos avanços dessa correção de modelo educacional injusto é a fixação, às vezes até desmedida, de um conceito direcionado às necessárias mudanças sociais e políticas a partir da divisão de grupos humanos por determinadas características diferenciadoras.
Nunca houve nem haverá plena harmonia da espécie humana em qualquer sociedade do mundo. Os conflitos, assim como a cooperação, fazem parte da arte de viver. A um país como o Brasil, amalgamado pela riqueza de povos de todos os continentes, nas suas dimensões etnográficas, culturais, artísticas, econômicas e políticas, não cabe desprezar o alto custo humano sofrido para a formação de uma sociedade verdadeiramente mestiça. Mais do que pensar em segregação, precisamos fortalecer as nossas matrizes étnicas e suas contribuições ao que nos tornamos.
A apartação cidadã por critérios raciais é a institucionalização do racismo. E, se sedimentada, essa atitude pode tornar-se pior do que os preconceitos existentes; pode ser uma espécie de talidomida da vida social brasileira, prescrita como receita contra o enjoo de grávidas de ressentimentos históricos, com o risco de daqui a alguns anos descobrirmos que o novo ser humano saído do seu ventre sofre de indesejáveis deformações. Assim como nas ciências exatas, nas ciências humanas alguns procedimentos precisam de um tempo de maturação. O que todos sabemos é que, tal como nos organismos, o que se aplica em uma sociedade pode não servir a outra.
As nossas deturpações de aspectos étnicos, derivadas de poderosas circunstâncias econômicas, precisam ser corrigidas impreterivelmente no âmbito da educação e da cultura. O Ministério da Educação (MEC), com Fernando Haddad e mais recentemente com Aloízio Mercadante, está fazendo a parte dele, ajustando visões e costurando a integração de sistemas de avaliação, seleção e adequação que efetivamente colaborem para construir perspectivas transformadoras e duráveis de justiça social.
A outra asa para o voo dessa ave da emancipação social é o Ministério da Cultura (MinC), mas a ministra Marta Suplicy preferiu investir na estratificação étnica, sob a alegação de que a experiência do sistema de cotas estadunidense chegou a gerar um presidente negro. Cabe lembrar que o presidente Barack Obama não pensa assim, já que assume publicamente a dificuldade que teve de se reconhecer negro, por consequência de ter sido criado pelos avós brancos, em um lugar bem distante da tensão racial norte-americana.
Marta Suplicy morou nos Estados Unidos na década de 1960 no momento em que naquele país os movimentos por direitos civis conseguiram emplacar políticas de cotas. Novamente, não me parece demais recordar, por exemplo, que, nos EUA, quem era negro não entrava em restaurante de branco e vice-versa. Ainda que tais medidas estejam em estágio de reversão em vários estados dos Estados Unidos, por falta de produção de impacto na superação da pobreza das pessoas negras, e, como se uma coisa tivesse perfil decalcável da outra, a ministra resolveu instituir no MinC cotas para criadores, produtores e artistas que se declarem negros.
Declarar-se como negra ou negro apenas para ter direito a vantagens compensatórias oferecidas pelo MinC reforça estigmas e deturpa o sentido das manifestações artísticas e culturais, como por vezes ocorre com quem se submete ao gosto dos curadores para ser aceito em editais ou entrar nas galerias e museus. Se o MinC queria ser coerente com o raciocínio de cotas raciais, eu diria ironicamente que ele deveria destinar ao Nordeste a maior parte dos recursos da cultura, considerando que é nessa região onde vive a maioria negra brasileira, posto que o grosso dos recursos controlados pelo MinC está concentrado em projetos sudestinos.
Esse esforço de segregação étnica desprendido pelo MinC acontece no momento em que a) o mercado editorial brasileiro está sendo comprado e pasteurizado pelas transnacionais de best sellers e blockbusters, b) Monteiro Lobato, uns dos maiores e mais importantes escritores de literatura infantojuvenil mundial, é perseguido por doutrinadores da intolerância racial, e c) as referências bibliográficas de internet surgem e somem sem mais nem menos, deixando a produção científica sem direito a revisitação de fontes, mas a Fundação Biblioteca Nacional (FBN), em vez de estar cuidando de situações como essa, fica gastando energia com a orientação da ministra Marta Suplicy para a formação de autores cuja pele apresente maior concentração de melanina.
A ascensão de parte significativa da população brasileira pobre ao status de consumidora, possibilitada por programas como o Bolsa Família, exige que o País desenvolva políticas específicas de cultura, capazes de fortalecer os anticorpos da diversidade e da pluralidade na população para que não fiquemos à mercê do poder de sedução e convencimento do mercado. Aí, sim, o MinC estaria fomentando ideais de convivência e de coesão social pela igualdade nas diferenças e não usando a máquina pública para estimular a apartação por critérios de cor da pele.
O risco das cotas é o risco da rotulação e da fixação de estereótipos. Numa entrevista concedida anos atrás ao jornalista estadunidense Mike Wallace (1918 – 2012), no seu famoso programa “60 Minutos”, do canal CBS, o grande ator e diretor Morgan Freeman traduz bem o incômodo de muitas e muitas pessoas negras com esse tipo de política de classificação racial. O trecho da gravação que está disponível na internet revela o seguinte:
— Mês da Consciência Negra (*), o que acha disso?
— Ridículo
— Por quê?
— Você vai confinar toda a minha história a um único mês?
— Ora, por favor…
— O que você faria com a sua história? Qual mês é o “Mês da Consciência Branca”?
— Bem… eu sou judeu…
— Ok! Então, qual é o “Mês da Consciência Judaica?”
— Não existe…
— Oh, oh… por que não? Você quer que exista um?
— Não, não…
— Não? Tudo bem. Eu também não quero! Eu não quero um “Mês da Consciência Negra”. A história dos negros é a história da América!
— E como vamos nos livrar do racismo?
— Parando de falar sobre isso! Eu vou parar de lhe chamar de branco e pedir a você que pare de me chamar de negro! Eu lhe conheço por Mike Wallace e você me conhece por Morgan Freeman.
O que Freeman quer dizer é que a prioridade deve estar na pessoa. Para isso, temos que pensar grande, pensar Mandela, ter coragem de romper com o lixo do aproveitamento da condição do outro como meio de vida. Não pode haver injustiça social maior do que o próprio estado segregar cidadãs e cidadãos pela cor da pele. Se continuarmos tirando proveitos políticos e econômicos de ressentimentos, poderemos nos tornar no futuro a África do Sul do passado. O Brasil precisa intensificar suas políticas de justiça social, a partir de uma cultura de conciliação, até o dia em que nos reconheçamos iguais nas nossas diferenças.
(*) Nos EUA, “Mês da História Negra”.