Karine A., na medida incerta
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 11 de novembro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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O CD Mulher Tombada, da cantora e performer Karine Alexandrino, é um precioso caso de liberdade artística no fustigar da insignificância para traduzir sensações de impossibilidade. “Sangrado” por ela e “fervido” no caldeirão de linguagens da música eletrônica de Dustan Gallas, esse disco libera uma voz solitária na trama dinâmica dos pontos cegos da pálida cultura urbana fortalezense.

As mensagens do corpo de uma artista ‘nua, entre os seus destroços’, têm caimento perfeito na peruca de Roni e nas fotos de Nicolas Gondim, que realçam a cútis de manequim e a forma de resina plástica e fibra de vidro com que Karine tenta controlar os nervos em meio às timbragens, oscilações, filtros e camadas tonais de Dustan.

Ela procura se achar enquanto perdedora, em um mundo de vencedores infelizes. Mulher Tombada fala da “eterna luta entre o salto alto e a escada / Entre o sucesso e o fracasso”. Ao afirmar: “Não é pra mim”, Karine desanca os signos do botox e do silicone, tal qual uma jihadista que se lança ao martírio como jeito de invocar algo maior que a vida possa oferecer.

Enfrenta de peito aberto hipocrisias e determinismos sociais, em gritos, sussurros e gemidos de quem se estraçalha para fazer outra coisa da vida. Assim, Karine traz em sua música a capacidade de complexificar o amor em tempos de pau de selfie. Na letra de Troglodita Predileto, desafia: “Sem amigo gay, ninguém evolui”.

A força de um pós-feminismo dilacerado, presente em novo tipo de estética ‘glam’ no que diz respeito ao visual escandaloso, aparece no álbum de Karine Alexandrino, não como atitude de emancipação, mas de denúncia da falência de conquistas que premiaram a ideia de que não se precisa mais do outro para ser feliz.

Como o personagem Bérenger, da peça O Rinoceronte, do dramaturgo romeno Eugène Ionesco (1909 – 1994), Karine é uma anti-heroína abraçada a dúvidas e angústias a cantar a morte do medo social. Faz isso com ironia, humor, patafísica e histeria, sem hesitar em reproduzir no encarte a foto do corte de uma costela animal, com resquício de bioarte do paraíso.

Mulher Tombada retrata a conturbada mente da cantora em suas coisas ordinárias. Karine assume o papel de ‘pessoa-laboratório’ na sua concentração radical das contradições de uma sociedade inundada em banalizações e ressentimentos. Na faixa Assim Vamos Chegar ao Japão, ela apavora: “Meu amor não se iluda: devo tudo ao meu rancor”.

Karine e Dustan formam uma dupla em rebelião de intimidade poética. Dão forma e eco a uma música que se bate entre a estética e a experiência, num mix de investigações sonoras e construções rascantes. Em Amor na Estrada (Quero Sair Dessa Bolha Maldita), expressa os limites da sua expectativa: “Vamos dormir até a próxima ponte”.

No paradoxo entre o brilho e o desespero, Mulher Tombada dança numa pista de músicas tensas e perfeitas para relaxar. Em Cabaret Producta, a cantora assegura que “lutou pra não ser banal” e recorre à fase do excelente CD Solteira Producta (2007) para dizer ‘chega’, proporcionando prazer estético e colocando interrogações acerca do sentido do sucesso.