Leitura em família
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 10 de setembro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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Há dois gestos que caracterizam bem a relação de respeito do adulto quando diante de uma criança: agachar-se, para ficar da altura dela, ou levantá-la pelos braços, para que ela fique da sua altura. O mesmo nível do olhar é fundamental para o estabelecimento sincero dessa comunicação. Associo essa atitude de deferência para com meninas e meninos ao exercício da leitura em família, em que abaixar-se é fazer a leitura para a filha ou para o filho na hora de dormir, e elevá-los ao nível do olhar é incentivar que a criança leia por si.

A leitura da noite está no âmbito da oralidade e pede textos que envolvam estratégias mentais que ajudem a criança a se desligar da condição de acordada para se entregar ao ato de dormir. Assim, ainda no semissono, ela vai saindo das tarefas diárias e dos apegos eletrônicos até adormecer. Já o hábito de ler sozinha é uma experiência ativa de construção das próprias imagens, a partir das palavras e da criação metafórica pródiga que estas proporcionam. O texto literário é um orientador de emoções, mas a emoção é do leitor.

Na conversa sobre leitura em família, realizada sábado passado (6) no colégio Canarinho, onde meus dois filhos fizeram o Ensino Fundamental I, mas da qual participei na condição de pai de estudante do Canarinho Sapiens, chamou-me especialmente a atenção o relato de um casal que encontrou uma solução criativa para a prática da leitura com o filho que não gosta de ler: o pai faz a leitura do livro sozinho e, à noite, conta ao filho a história que leu. Na sequência, a mãe pede ao filho que conte para ela a história que ouviu do pai.

A leitura é um processo vivo, que permite à criança especular a forma como organiza o próprio mundo. Toda movimentação em favor do hábito de ler precisa levar em conta a natureza da imaginação de meninas e meninos. A concentração em personagens e situações portadoras de algo que lhes interessa na história é uma característica básica dessa compreensão. Está na lógica da articulação do pensamento infantil em sua busca para encontrar sentido nas coisas que a cercam.

Ler é se colocar no centro de um universo de significados, e não apenas no centro do livro. Daí a percepção infantil se tornar mais atraente para cativar e cultivar a imaginação. O desconhecido é estimulante, e é desafio dos pais descobrir novidades, livros que tenham história, fluência metafórica, com autores querendo dizer alguma coisa, mesmo sabendo que é difícil de encontrar livros bons para os nossos filhos em meio a tantos títulos dirigidos aos “consumidores” infantis.

É importante observar que o pensar da criança não é um estágio do pensamento adulto; é outro pensamento, outro modo de ver o mundo, algo menos lógico e mais lúdico. A leitura é uma possibilidade de levar a criança a reconhecer o mundo adulto a partir do seu imaginário. Isso se dá porque as histórias contidas nas páginas do livro são reanimadas por ela, mesmo originalmente tendo sido criadas por adultos. Existe nessa troca uma circularidade. O imaginário parte do real e o real recebe de volta a atenção da criança pelo prisma imaginário, pelo qual ela tem a oportunidade de atribuir um papel a si, de se idealizar em seu meio.

Imagens mentais evocadas pelas palavras são mais importantes do que apenas belas ilustrações. Citei na reunião do Canarinho alguns títulos considerados juvenis, como provocação aos pais e crianças presentes, para dizer com exemplos que é a história que vale. Contei do sucesso que o livro “A pérola”, de John Steinbeck (1902 – 1968) fez com as crianças na nossa casa. Meu argumento foi o de que a leitura para criança não precisa ser necessariamente de um livro infantil. O romance do escritor estadunidense se passa em uma comunidade de pescadores e o alvo da narrativa é uma criança. Não é, no entanto, a criança da história que nossos filhos acompanham; eles perseguem o que inquieta o personagem criança, o que o desperta para a ação.

Neste caso, entendo que os nossos filhos seguiram as perspectivas de superação da vulnerabilidade da criança, ante o desafio do pai de superar a barreira da ignorância, a fim de conseguir que o filho viesse a estudar e, um dia, pudesse dominar os códigos sociais aos quais, como pescador, não tinha acesso. Por esse raciocínio, mesmo os livros sem palavras podem ter texto, no sentido de discurso. É o caso do livro “O lenço”, da ilustradora paulistana Patrícia Auerbach, escrito com gestos da personagem. Esse tipo de recurso, quando bem feito assim, produz palavras invisíveis. Se um pano voa ao sabor do vento, a criança lê “leveza”.

A imagem reconhecida no texto se torna ideia. E, sendo ideia, vira curiosidade. E, sendo curiosidade, leva, consequentemente, o leitor ao desenvolvimento da competência da leitura espontânea. A relação com a literatura é uma relação com uma expressão de vida autônoma. Não é à toa que muitos pensadores referem-se à imaginação como um reino, categorizado como os reinos animal, vegetal e mineral. E eu acrescento ainda o reino simbólico a esse conjunto de seres, coisas e representações.