Escrever sobre leituras é como compartilhar pensamentos que se deixam ouvir como em um sarau silencioso de literatura. Esse impulso ao imaginar com outra imaginação faz do livro Sopro na Aragem (Córrego, 2017), da economista e escritora mineira Eliana Cardoso, uma agradável obra de leveza e profundidade.
Com título colhido em um poema da escritora carioca Cecília Meireles, esse livro mescla escritos sobre recordações pessoais de leituras entrecruzadas brandamente com fatos e dados de crônica cotidiana. Em vozes e episódios realçados por múltiplas camadas narrativas que chegam fácil ao leitor, ela concatena notas e reflexões movidas pelos ventos da sua experiência.
Página por página, Eliana Cardoso vai abrindo janelas dos seus corredores temáticos para mostrar paisagens que se estendem desde encadeamentos psicológicos do panorama medieval da oralidade até impactos das tecnologias digitais na imaginação. Fala de personagens de transgressões clássicas e de gente sem ocupação cultural, que não consegue escapar das modelagens institucionais.
O amor é uma vista exuberante no cenário descortinado pela autora. Aparece como expectativa de felicidade e como peça desgastada na busca dessa mesma felicidade, quando ser normal não parece fácil. Na guerra entre ilusões abordadas pela autora, amar tem natural destaque poético e real no calor das paixões e suas fúrias e dramas. Ela, talvez até por ser economista, não parece ter dúvida de tratar o dinheiro como o mais frio de todos os ventos que açoitam o amor.
O ciúme e a inveja aparecem no olhar de Eliana Cardoso como sentimentos inseparáveis. O ciúme, enquanto receio da perda de quem se imagina possuir, e a inveja, como sensação de perda do lugar para alguém. Na letra da música Bolha, gravada por Mona Gadêlha e Anna Torres, chamo esse amor possessivo de ambição.
Muitas histórias são salientadas pela escritora envolvendo a magia dos costumes em personagens como Zambinella, o ‘castrato’ que se tornou ausência em uma trama para esconder a fortuna resultante de sua maravilhosa voz, em um tempo, como conta Eliana, no qual a masculinidade se definia como categoria política e não como identidade sexual.
Como a agonia do soldado francês que matou o alemão no filme Frantz (2016), de François Ozon, a consciência da dor que se provoca em outro ser aparece no relato de Eliana Cardoso na lembrança de uma barata que ela matou por asfixia em um saco plástico, caso do qual ela se vale para reforçar a presença da psicanálise na literatura moderna.
Esse mesmo estímulo do pensar comovente no outro surge na hesitação do guerreiro hindu que para vencer uma batalha precisa matar muitas pessoas que não fizeram nada de errado. A noção de justiça presente nesse questionamento é levada pela autora ao contraditório ético entre a prioridade do dever e o domínio do desejo de não matar, e conversa também com oscilações do livre-arbítrio e da proteção, da liberdade e da ordem.
Em Sopro na Aragem, Eliana Cardoso vale-se de esquemas narrativos capazes de ventilar segredos do feminino, vidas que se renovam quando brotam da morte, a ocupação de espaços das crenças religiosas pela estética da transgressão sexual, o cansaço do eu, pecados, misericórdias, leis e tantos fatores determinantes do jogo do desejo contra a natureza humana na definição do ser pessoa.