Lembranças de Paulo Abel
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 20 de Dezembro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil 

Artigo em PDF

De maio de 2012 a maio de 2013 foi o período definido pela Secretaria de Cultura Artística da Universidade Federal do Ceará (UFC) para celebrar o “Ano Paulo Abel do Nascimento”. Como parte das homenagens a esse grande nome do canto lírico mundial, nascido em Fortaleza, no ano de 1957, e falecido em Paris, em 1992, já está em fase de impressão, para lançamento nos primeiros meses do ano que vem, a coletânea intitulada “Paulo Abel. Eu me lembro”, com textos-depoimentos de pessoas que conviveram de perto com o cantor.

O livro, que tem também o apoio da Coordenadoria de Comunicação e Marketing Institucional da UFC, foi organizado pelo professor Elvis Matos, diretor da Secult-Arte/UFC, e traz, dentre outros, depoimentos da musicista Izaíra Silvino, da atriz e professora Erotilde Honório, dos poetas Oswald Barroso e Diogo Fontenele, do maestro Tarcísio José de Lima e do psicólogo José Olinda Braga. Para mim é motivo de grande contentamento participar dessa relação de convidados, tanto pela admiração que sempre tive pelo Paulo Abel, como artista, como por ser agradecido a ele pelos ensinamentos que dele recebi no campo estético musical.

Perguntei ao professor Elvis se teria algum inconveniente adiantar aos leitores deste DN trechos do que escrevi das memórias que tenho do Abel e ele, generosamente, me disse que não. Deu vontade de espalhar mais e mais esse depoimento porque contei de Paulo Abel como alguém que conta da vivência que teve com um fenômeno da música, sua figura ímpar, seu jeito inconfundível e sua voz preciosa. No registro das minhas lembranças, procurei semear protonarrativas que de alguma maneira pudessem, juntando-se a outras, contribuir para o entendimento desse ícone do talento e da sensibilidade artística; alguém que abraçou a música como matéria viva e vibrante da condição humana.

Lembrei do tempo em que ele estava reativando o coral da Escola Técnica Federal do Ceará (hoje IFCE, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará), na segunda metade dos anos 1970. Naquele momento pude sentir de perto a atmosfera de um mundo criado pelo canto coral. Recordei do dia em que o Abel me entregou uma partitura de música sacra do Padre José Maurício Nunes Garcia (1767 – 1830), um dos maiores compositores brasileiros e o mais importante do Brasil colonial, e começou a me ensinar a solfejar. Adorei aquela possibilidade de entoar os sons das notas musicais com os seus próprios nomes.

Depois desse “Kyrie”, passei a conhecer e a cantar obras e autores que eu desconhecia. Paulo Abel fazia isso com uma autenticidade incomum de orientação, quando oferecia oportunidade de aprendizagem e quando colocava em prática o aprendizado. Em uma das primeiras vezes que cantei com ele regendo a “Ave Maria” em latim, com arranjo vocal do maestro italiano Bonaventura Somma (1893 – 1960), senti o cantar como um ato de saltar com luz própria no escuro dentro de si: “Ave Maria / Gratia plena / Dominus Tecum / Dominus Tecum / Benedicta tu / in mulieribus / et benedictus / fructus ventris tui Jesus / Sancta Maria / Mater Dei / Ora pronobis / Ora pronobis peccatoribus / Nunc et in hora / mortis nostrae / Amem”.

Quando eu pensava que já tinha visto tudo, o Abel me chama para fazer o solo da música “Casinha Pequenina”, essa obra-prima do domínio público, da passagem do século XIX para o século XX. Eu não queria, tinha vergonha, mas disse sim e em diversas situações cumpri emocionado o papel que ele me concedeu. Mais uma vez o carisma e o comando motivador de Paulo Abel me deram ensejo a mais uma experiência de grandeza. Eu, tenor, cantava: “Tu não te lembras da casinha pequenina / onde o nosso amor nasceu”; e as sopranos respondiam: “Não te, não te lembras / daquele beijo demorado / prolongado / que selou /o nosso amor”. Não sei traduzir essa sensação em palavras, mas posso dizer que aquela modinha agitava todas as minhas frequências de imaginação.

Tudo era criação e recriação em Paulo Abel. Ele inventava os segundos e, se fosse necessário, preenchia o tempo com raridades. Certa vez, numa apresentação — que não lembro bem se foi na TVE (atual TV Ceará/Cultura) ou na sala do Instituto Goethe, da Casa de Cultura Alemã da UFC —, abrimos o espetáculo com “Io son Fenice” de Orazio Vecchi (1550 – 1605) e ele imediatamente fechou o coro no momento de partida. Alguma voz talvez não estivesse bem afinada e ele aproveitou para contar à plateia que aquela era uma peça da renascença italiana, inspirada no mito grego da ave de fogo que, ao morrer, renascia das cinzas. E voltamos com a carga toda: “Io son fenice / e voi sete la fiamma / Che m’arde a dramma / Mala morte m’è dolce si gradita / Che per anco morir ritorno in vita”.

Por sua capacidade de simbolização e de dar longevidade ao instante, à mínima, à semínima, Abel nos estimulava a fixar referências e a ter segurança em nossas atuações em grupo e individual. Cada integrante do nosso coral era alguém; o Carlos Alberto (Einstein), o Paulão, a Ivna Bustamantes, a Sandra Fonteles, eu, nós, elas e eles. Cada voz era uma voz; os baixos, os tenores, as contraltos, as sopranos não pareciam somente naipes de distintas tessituras vocais, mas elementos de comunhão, de paixão pela música e pelo outro. Mas um dia ele foi embora para a Itália realizar o seu sonho de ser um artista internacional e, confesso, fiquei um tanto desamparado com relação ao meu interesse pelo canto coral.

Tudo o que aprendi a observar em Paulo Abel passou pela música; como se ele fosse feito de música e essa música tivesse ido embora com a sua força lírica. Acho que naquele momento eu não soube entender o quanto ele estava deixando para cada um de nós, para o grupo e para o Ceará como um todo. Hoje, olhando para tudo isso, ouvindo o que ficou ressoando em mim, sinto que foi uma vivência indispensável ao que sou. Ou seja, ele não tinha levado a música com ele; ela a tinha deixado espalhada em cada um de nós. De alguma maneira, preservei aquela ingenuidade como um reforço à minha mania de desde criança contar com a música em tudo o que faço.

A facilidade de enxergar e expressar beleza nos sentimentos e nas emoções levou Paulo Abel a tratar a sua força lírica não somente como testemunho de vida e do viver, mas como uma profissão. Dei-me conta disso com mais clareza no dia em que fui ao cinema ver o filme “Ligações Perigosas” (EUA, 1988), de Stephen Frears, baseado no romance francês “Les liaisons dangereuses”, de Pierre Choderlos de Laclos. Ao ver e escutar o filho do seu João e da Dona Raimunda brilhando na telona do cine São Luís, vi e ouvi a concretização do sentido presente e intenso do canto, que ele tanto nos transmitira. Abel aparece no filme cantando “Ombra mai fu”, ária criada pelo compositor alemão Händel (1685 – 1759) para soprano castrato, que fala de um rei enaltecendo a beleza da sombra de uma árvore. 

Essas são algumas das lembranças que estão descritas no meu depoimento, no livro “Paulo Abel. Eu me lembro”. Estou muito curioso para ler cada um de todos os relatos dos demais convidados do professor Elvis Matos para essa publicação da Secult-Arte/UFC, e contente por fazer parte dessa feliz homenagem a um artista de extraordinária força lírica, que soube como ninguém transitar com plena liberdade pela essência da arte dos autores que amava e que conseguia transmitir as descobertas do seu espírito criativo a quem com ele se relacionasse.