Levante musical no Maranhão
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 14 de Maio de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Quando o compositor Josias Sobrinho escreveu a música “Engenho de Flores”, que ficou conhecida em todo o Brasil na bela voz de Diana Pequeno, ele se inspirou em algum clarão do nascente: “Eu vi Fortaleza falar”. Recorro a essa mesma imagem para contar de um movimento musical que está acontecendo ao sol poente: Eu vi São Luís abalar. Quem olha de fora sempre tende a construir uma visão idealizada das contradições do cotidiano. Pode ter acontecido com o Josias e pode estar acontecendo comigo. Mas está ficando enfadonho saber do mundo pela versão das carências. Precisamos acreditar nas notícias boas. E a melhor novidade em andamento no que está sendo chamado de “Som do Mará” é o senso de autonomia, de união de diferentes, de continuidade e a freqüência do público durante as apresentações.
O que me desperta para essa movimentação é que ela está surgindo de baixo para cima. Aflora do empenho dos artistas e do envolvimento da comunidade, sem dependência dos governos e sem as exigências muitas vezes humilhantes dos patrocinadores que insistem em comandar o sentido da arte. Está acontecendo. O levante vem se dando nas noites de domingo desde outubro do ano passado. Por ocorrerem na concha acústica localizada no complexo turístico da Lagoa da Jansen, na Ponta d´Areia, os espetáculos receberam o nome de “Concha Musical”. Muitos artistas se apresentam na mesma noite, mas ninguém pode exibir mais de duas músicas para não ficar manjado demais. A não ser que o público peça bis. Se os organizadores conseguirem sustentar essa disciplina, os músicos, cantores e compositores maranhenses sempre terão e serão novidade nas apresentações. E isso é essencial para a vitalidade desse tipo de iniciativa.
A escolha da concha para a realização desses encontros musicais foi em si uma ousadia. O risco de fracasso na definição de um lugar que comporta até três mil pessoas era grande, considerando que Josias Sobrinho, Tutuca, Beto Pereira, Celso Reis, Chiquinho França, Gerude, Dafé, Ronald Pinheiro e Marcus Duailibe iniciaram a jornada patrocinados essencialmente pela confiança no próprio talento e na boa-fé da gente maranhense. Eles conseguiram alguns apoios para pagar as despesas com aluguel de som, luz e o cachê de uma banda básica. Deu certo. A cidade foi se encontrando em sua musicalidade e o evento virou ponto de convergência e de agitação para pessoas de todas as idades. Há quem compare a aceitação e o comparecimento ao “Concha Musical” apenas com os espetáculos juninos que, no Maranhão, são os mais animados do Brasil. Nesse período de fortes chuvas em São Luís, a festa foi transferida para os ginásios de esportes das escolas e a lotação demonstra que o sentimento pegou.
O sentido de pertencimento, diante de tantos bombardeios de música ruim que as gravadoras transnacionais pagam para tocar, parece mover o engenho de flores que cada pessoa guarda em si. O “Som do Mará” tem esse quê de proximidade, de sentido comunitário, de força cultural genuína. Essa movimentação está ensejando um direito de oportunidade cruelmente negado aos artistas e ao público. É o direito do artista de mostrar o seu trabalho e o direito do público de conhecer o que cada artista está fazendo e, assim, poder escolher. Com a oportunidade de se apresentar para tanta gente, muitos artistas, que estavam com CDs encalhados, pelo simples pecado de serem desconhecidos, começaram a vender. Durante as apresentações é colocada uma banquinha com discos dos mais variados autores e intérpretes maranhenses.
A movimentação começa a encorpar e o grupo do “Som do Mará”, num feito inédito, disse não às propostas de exclusividade. E o mais importante nessa atitude é que houve compreensão, num lugar onde as práticas sociais são visivelmente hierarquizadas. Essa maturidade de relacionamento traz uma contribuição para a música, mas, principalmente, para a cidadania maranhense. Cada pessoa que se desloca para espaços como o da Concha Musical, pelo prazer de circular, de encontrar amigos, de se divertir e de ouvir o som da sua terra, está sendo educada a amar a cidade, a se reconhecer amada na multidão. Assim, empresas como a Vale do Rio Doce, a Vivo Celular, a Alumar, os jornais, rádios e televisões maranhenses têm estado juntos na evolução do processo de sedimentação desse eixo de vitalidade cultural e social. Com uma movimentação nessas proporções todos só têm a ganhar. A síntese da união está bem grafada no texto do encarte do novo CD do compositor César Teixeira: “A música não pode ser condenada ao pôquer das vaidades”.
O poeta Celso Borges recorda em texto publicado no “Almanaque Guarnicê” que no início dos anos 1980 dava para contar nos dedos os artistas do Maranhão que tinham disco gravado. Desse período aos dias de hoje, vale realçar o trabalho do Papete que, nessa empreitada de tornar a música maranhense reconhecida, publicou 18 discos como intérprete e ganhou os mais destacados prêmios mundiais como percussionista. Vale a pena também exaltar a força rítmica da cantora Tânia Maria, que conquistou lugar relevante nas plataformas da música estadunidense; caminho perseguido atualmente na França por Anna Torres e sua potente voz de guerreira cafuza. A música do Maranhão levou para o cenário nacional nomes como João do Vale e Alcione, Tião Carvalho e Rita Ribeiro, Zeca Baleiro e as “pedradas” da escola de cegos que virou Tribo de Jah. Além de muitos outros, a exemplo de César Nascimento, Mochel, Chico Maranhão, Mano Borges, Lourival Tavares, Godão e Rosa Reis, que ficaram com a missão de temperar a fibra no próprio terreiro. E as revelações da Ilha seguem com Cecília Leite e Flávia Bittencourt. “Pressinto que esse vento leve / Leva algo que eu carrego / Comigo”, diz Flávia na faixa “Vazio” do seu CD de estréia. Mestres e grupos populares, alunos da Escola de Música do Maranhão, todos cabem no “Som do Mará”. Brotam cores do engenho de flores e escuto Josias cantar: “Não vou tirar o meu chapéu / Pra qualquer vagabundo (…) Me resta ainda o direito de ser / Consciente da situação”.