Lições da Dona Socorro
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 09 de Maio de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Como todo filho querido e mimado pela mãe, sempre estive atento aos seus ensinamentos, na maioria das vezes não verbais. A atitude da dona Socorro, na sua relação com o mundo, me impressiona pela sofisticação da alma e pela simplicidade do seu jeito de viver e amar. Para ela todo o tempo é presente. Acorda e dorme como o sol, como os pássaros… Nenhuma mágoa para ser compensada no dia seguinte, nenhuma pendência no querer, nenhuma cobrança no ar… Nasceu na localidade de Boa Fé e foi morar na cidade de Independência, onde casou, teve três filhos e cuida da vida.
Há 25 anos desloquei-me para estudar e trabalhar em Fortaleza. Deixei meu copo na porta da geladeira. Um copo de plástico, com as bordas mordidas, que eu guardava no compartimento de laticínios para facilitar beber água no vaivém do dia-a-dia interiorano. Até hoje ela lava esse copo como se eu fosse utilizá-lo a qualquer momento. E sempre que vou por lá tenho a sensação de que não tem diferença entre a sede de hoje e a que me levava à geladeira na infância e na adolescência. É como se não desse nem para existir saudade. Aprendi que o zelo pelas pessoas que a gente gosta não deve estar subordinado aos caprichos do tempo e da distância.
Por um período da minha infância, moramos em um lugar chamado Poço Comprido. Era uma casinha de taipa bem limpinha e com um chão de barro batido, incomparável para, literalmente, deitar e rolar. Em época chuvosa eu gostava de correr no meio do mata-pasto para pegar borboletas. Lembro que eu olhava pra trás e ela, sentada no tronco de árvore que fazia as vezes de banco no alpendre, também me olhava, apreciando a brincadeira. Não me sentia vigiado. Entendia seu gesto como uma atenção boa, carinhosa. Depois ela saía, ia cuidar dos afazeres e eu também não voltava mais a conferir se ela ainda permanecia no alpendre. Aprendi que a liberdade de explorar os ambientes que nos atraem e de superar os próprios limites é uma questão de segurança afetiva. Ponto de densidade para a expansão do ser.
Na sede do município, morando na praça do mercado, construí no quintal uma aconchegante casa na árvore. E minha mãe fazia questão de prestigiar aquele refúgio, fingindo que não me via subindo pelo caule panorâmico. Quando precisava de mim para soprar as brasas do ferro de engomar, moer milho, mexer panela de doce e outras tarefas domésticas, chamava pelo meu nome, como quem sequer desconfiava do meu paradeiro. Com seu caráter de brincadeira de esconde-esconde, aquela encenação valorizava a simbologia do meu espaço secreto. Por trás dos pedaços de surrão, que formavam o tapume irregular da casa da árvore, eu observava a movimentação e só depois aparecia do nada, com cara de quem estava fazendo uma surpresa. E ela mostrava-se admirada com o meu suposto surgimento repentino. Aprendi a importância do respeito à fantasia.
Quando já morava em Fortaleza, certa vez ela escreveu dizendo que viria passar um fim-de-semana com a gente. Normalmente ficava hospedada na casa do meu irmão. Eu morava sozinho em um pequeno apartamento térreo, na divisa do Morro do Ouro com o Jacarecanga. No transe amnésico da adolescência, me mandei para Canoa Quebrada. Só fui lembrar da carta dela quando voltei no domingo à noite. Fiquei arrasado, com um remorso sem par. Não tinha justificativa o que fizera. Em meio a essa tempestade na consciência, notei um carro estacionando na calçada. Olhei pela veneziana. Era ela que, antes de ir para a rodoviária, resolveu passar mais uma vez na minha casa. Abri a porta e, antes de esboçar qualquer manifestação, ela se antecipou: “Você está bem, meu filho? Estava preocupada com você”. Abracei-a e disse baixinho ao seu ouvido para mais ninguém escutar: “Esqueci que a senhora estava vindo e fui para uma festa na praia”. Ela, também sussurrando, perguntou: “Foi bom, você se divertiu?”. Naquela mesma noite, escrevi um poema intitulado “Socorro”, dediquei-o a Vicente Celestino e mandei para ela logo no dia seguinte. Aprendi que amar é um ato de compreensão e cumplicidade.
Nos períodos de seca, quando é grande a falta de água no sertão, minha mãe apresenta uma aflição esquisita. Ela sabe que a pouca água encontrada nas cacimbas ou fornecidas por carros-pipa tem como prioridade o consumo humano, os animais e os vegetais produtivos. Pouca gente compreende o quanto aguar seus jarros de flores é fundamental. Se eu fosse escolher qual a missão mais difícil que a minha mãe tem enfrentado nesta vida, diria que é socorrer flores e plantas ornamentais em tempos de seca. Quando em casa não dá para salvá-las, sai distribuindo com as amigas para que cada uma escape a que puder. Aprendi a considerar o belo como uma necessidade básica humana.
Mais importante do que uma viagem que fez a Jerusalém foi o simples fato de, lá, ter caminhado nas mesmas ruas que Jesus caminhou e de ter contemplado o mesmo horizonte que ele contemplou. Revela isso com a mesma singeleza com que fala do bordado que fez para as fraudas do neto Lucas. Sua capacidade de concentração e envolvimento em tudo a que se dá subverte o tamanho das coisas e a lógica tradicional de valores. Tudo para ela é infinitamente grande e essencial. Dessa disposição tão própria herdei a mania de me dar por inteiro. Não há nada que eu faça que não seja de coração, como sentir orgulho de ser filho da dona Maria do Socorro, com quem aprendi a aprender.