Lindo pendão da esperança
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10
Domingo, 07 de Julho de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O lance mais bonito da conquista do pentacampeonato brasileiro aconteceu logo após o último jogo. Mais bonito do que o gol de falta do Ronaldinho Gaúcho contra a Inglaterra. Mais bonito do que o corta-luz do Rivaldo na jogada que deu ao Ronaldo a chance de finalizar o placar da partida contra a Alemanha. Mais bonito do que os dribles do Denílson. Mais bonito do que tantas outras exibições de talento do futebol brasileiro. Foi a exibição do talento espiritual do capitão Cafu, quando ele quebrou o protocolo da cerimônia de premiação do maior evento desportivo do Planeta e subiu com a taça no topo da tribuna disposta no palco do pódio. Estava ali o totem vivo de uma cultura, a estátua humana da liberdade, uma oportunidade para quem quisesse se iluminar.
Vivenciei o reflexo dessa luz nas ruas, na celebração espontânea da vitória, no “brado retumbante” das pessoas e na alegria das charangas. Fiquei impressionado com a força com que entoamos o Hino Nacional (Joaquim Osório / Francisco Manoel da Silva). “Brasil, um sonho intenso, um raio vívido de amor e de esperança”. Essa vibração emociona, contagia, magnetiza. Somos uma gente ressonante e inclinada para a exultação. O gesto do Cafu foi um grito mudo que entrou em sintonia com a freqüência da intimidade nacional. Válter Pini lembra, em uma canção, que formamos um país cujo hino começa com o verbo ouvir. Precisamos então aprender a ouvir o bem-me-quer do “Florão da América”, driblando as tentações do business e as artimanhas da cartolagem.
Em dias de Copa do Mundo, quando o time joga bonito, tudo o que simboliza o Brasil ganha proteção coletiva. Observei bem os carros com as bandeirinhas verde-amarelas fixadas nos vidros laterais. Ninguém pega, ninguém toca, ninguém arranca. É vandalismo zero. Parece que a Seleção Brasileira torna-se, nesse caso, a tutora dos bons costumes e da cordialidade. Ganhar a Copa, vencendo com maestria e calor humano um adversário que nos campos político e econômico integra o grupo de países que é o dono da bola e manda no juiz, serve como referencial do orgulho possível. O entusiasmo com lances e gestos bonitos, espelhado nas comemorações do Penta, revela a inteligência do auto-reconhecimento instantâneo guardada no coração brasileiro.
Infelizmente tais manifestações são percebidas por muitos como mera sede de circo. Em ano eleitoral, como o que ora atravessamos, é difícil encontrar nos discursos políticos a tradução plena do nosso sentimento de dignidade. As propostas dos candidatos tendem a apontar soluções como paródias de esperanças. São promessas de habitação, saúde, educação, segurança e emprego que não envolvem as pessoas por dentro. É para mim, mas não é comigo. O compromisso com um projeto de sociedade passa ao largo das discussões econômicas e das denúncias encomendadas.
O caráter brasileiro é desejante. O gosto de fazer as coisas é mais importante do que os objetivos alcançados. Quando o Cafu escreve no peito da camisa canarinho a mensagem “100% Jardim Irene”, exaltando o seu bairro para o mundo, está demonstrando que a caminhada valeu a pena e que, no fundo da sua integridade, não está ali a serviço de uma trama que não criou e com a qual provavelmente não concorda. Esta é a lição do lance mais bonito da Copa. A lição da grandeza seletiva. É muito bom ser pentacampeão, mas o melhor mesmo é a honestidade da conquista.
Vivemos presos a inúmeras normas e aspirações perfeitamente dispensáveis. Para cumpri-las desperdiçamos esforços às vezes gigantescos, deixando de fazer o que realmente nos interessa. Quando isso ocorre, surgem as conquistas seguidas de infelicidade. Existem muitos vitoriosos infelizes, o que é uma contradição. A conquista só tem sentido quando se tem a quem oferecer e não a quem dar satisfação. Cafu ofereceu o brilho dos seus olhos à mulher Regina. Vi nas ruas as pessoas oferecendo umas as outras a vitória pelo Penta. Elas tinham laços comuns, uma festa em comum e estavam de verde e amarelo. Quebramos o tabu da nossa melancolia cívica ao vestirmo-nos com a bandeira brasileira. Vimos que não é pecado ter brio. Sentimos a brisa das ruas e o amparo da auto-estima.
Numa entrevista ao jornal Folha de São Paulo de 22 de junho passado, o jornalista polonês, Ryszard Kapuscinski, conhecido por seu trabalho de jornalismo literário no continente africano, declarou que “o Brasil é um fenômeno incrível. É o modelo da sociedade planetária do século 21, um país de inúmeras possibilidades de criação, uma nação formada por tantas culturas e raças e com um só idioma”. Diria mais apenas que, pelo visto, com uma só bandeira, “nos momentos de festa ou de dor”. O refrão do belo Hino à Bandeira (Olavo Bilac / Francisco Braga) anuncia que ela “recebe o afeto que se encerra em nosso peito juvenil”. Como ter consciência disso, eis a questão. O certo é que merecemos ser uma nação de vitoriosos felizes.