Um círculo vicioso sem saída visível é a imagem que tenho do que está acontecendo com a literatura infantil no Brasil. E me pergunto: estará essa literatura sendo afastada das crianças por força da ideia de leitura como tarefa e de metas cognitivas ou isso não passa de um parêntese nesses tempos confusos de desarranjo social e seus imediatismos? Qual é mesmo o fenômeno que torna o livro infantil prisioneiro das intenções didáticas, pedagógicas, militantes e mercadológicas?
As educadoras e os educadores comprometidos com a educação devem sofrer horrores quando são postos para trabalhar somente com livros explicativos, de utilidade prática, que direcionam o olhar de meninas e meninos apenas para o que deve ser assimilado. Sabem que criança apenas bem instruída é criança rendida, de infância derrotada, calada na linguagem natural do brincar, por onde trafega o sentido das palavras ao alcance de cada uma.
Ler sob o condicionamento operante das mensagens adultas é a mesma coisa que desenhar apenas com lápis e régua. Mesmo eventualmente ficando bonito, tudo é retilíneo de um ponto a outro. A literatura infantil não tem régua, é traço livre da imaginação a abrir possibilidades de visão que segue, inclusive, fora do alcance do olhar. E isso acontece porque ela é bosque, parque, rua, caixa de brinquedos, amigo imaginário, enfim, seres, lugares e situações que sintonizam com o nosso eu interior.
Muitas mães, pais e responsáveis pela educação das crianças que amam, ansiosos para capacitá-las a se darem bem diante das incertezas que decorrem exatamente desse tipo de alienação que corrói a vida social, nem sempre se dão conta de que deixá-las à mercê da literatura com regras de interpretação limita a infância a mundos prontos e isso causa o desfalecimento da imaginação e a destruição do valor do saber, atrofiando a força transformadora da humanidade.
Vivemos uma escassez imaginária. Nos abobalhamos e demonstramos isso a todo instante no uso das ferramentas digitais, onde a inspiração não passa de incorporação da nossa privacidade ao design dos aplicativos. Não seria hora de refletirmos a respeito das razões dessa predominância instrumental sobre a criatividade? Uma nova era precisa surgir dos escombros da hipermodernidade, e, sem formação humana, tudo só tende a piorar.
Um dos problemas que precisamos resolver é o da percepção do que realmente importa, o que é essencial. Isso não tem fórmula, é um aprendizado que cada indivíduo desenvolve na relação consigo mesmo e com a coletividade. A literatura contribui para a dialógica do sentir, da emoção e de como outras tantas pessoas e personagens pensam a vida e se movimentam no viver.
A literatura infantil é um campo de vivências semeado por interrogações, enquanto o livro instrucional é basicamente feito de afirmações. O fato de a infância estar cada vez mais submetida à influência preponderantemente exercida por esses títulos é um assunto que não deveria passar ao largo das responsabilidades educacionais e culturais.
Os livros de interpretações guiadas sequer propõem uma nova linguagem; são simplesmente uma mistura de cartilha prescritiva com livro de informação e literatura. A criança tem o direito de evoluir em suas faculdades imaginativas, e ainda não foi inventado nada melhor para isso do que a literatura sem amarras.