Luiz Gonzaga da sanfona para baixo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 01 de Novembro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Tentei encontrar uma personalidade da música no Brasil que tivesse a densidade e a grandeza artística, inventiva e de conjunção simbólica comparável a de Luiz Gonzaga (1912 – 1989). Na busca desse “tão grande quanto” consegui no máximo chegar ao maestro Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959), por conta da sua fabulosa obra de mineração e ressignificação da música popular e indígena, na construção de identificações do caráter estético da brasilidade.
Cheguei a pensar também se Tom Jobim (1927 – 1994), como uma expressão carioca de alcance internacional, não se aproximaria à figura lendária do velho Lua. Não, não deu, Luiz Gonzaga é um ícone que não tem paralelo no País. E foi com esse espírito de reverência que fui assistir ao filme Gonzaga, de Pai para Filho (Conspiração, 2012), do diretor brasiliense Breno Silveira, com exibição simultânea em vários cinemas de Fortaleza.
Reconheço que não foi uma boa ter criado a expectativa de que veria um filme à altura desse grande artista, no ano em que se comemora o seu centenário de nascimento. O que encontrei no cinema foi a repetição da fórmula esquemática utilizada pelo diretor no longa 2 filhos de Francisco (Conspiração, 2005), que conta as dificuldades passadas pela dupla sertaneja Zezé Di Camargo & Luciano até chegar ao sucesso massificado. Gonzaga, de Pai para Filho é, por conseguinte, Luiz Gonzaga medido da sanfona para baixo.
Essa linha de drama entre a sensação de impotência e a superação, envolvendo artistas famosos, com boa fotografia e roteiro convencional, alimenta esperanças de ascensão social e geralmente rende boa bilheteria. Na sala escura deparei-me com um filme focado nas idiossincrasias que marcaram a relação de contendas e apegos de desequilíbrio recíproco entre o Rei do Baião e seu filho Gonzaguinha (1945-1991), compositor e cantor de grande e reconhecida qualidade artística.
A condução das cenas direcionadas para a relação difícil e turbulenta de atração e rejeição, a ferver nas controvertidas motivações familiares dos protagonistas, exalta um realismo aflitivo nos encontros de Gonzagão e Gonzaguinha, mostrando ao público que muitos dos atritos que as pessoas comuns vivem em casa acontecem também com seus ídolos. Esse clichê da imperfeição acaba sendo bem aceito por levar a plateia a pensar a que ponto pode chegar um artista genial em sua vida ordinária.
A semelhança dos atores com os protagonistas reforça a intenção de verdade da narrativa. O elenco é muito bom. A atuação de Chambinho do Adordeon, sanfoneiro descendente de piauienses, que faz Luiz Gonzaga, e de Júlio Andrade, músico e ator gaúcho, que interpreta Gonzaguinha, é de muito valor. Eles expressam fisicamente o que se passa na mente dos personagens, transferindo ao público a intensidade do que estão representando.
Talvez a semelhança dos atores com os personagens reais tenha atiçado mais ainda o meu desejo de ver um filme grandioso e isso pode ter comprometido a leitura que fiz daquela projeção cinematográfica. O estereótipo emotivo que trata do vínculo conturbado entre pai e filho me pareceu inclinado a dizer que Gonzagão teria entrado em decadência porque se tornara um velho anuente aos militares, enquanto Gonzaguinha criticava a ditadura, podendo assim inverter o poder de amparo na relação dos dois, com o novo salvando o velho, o samba salvando o baião e o frágil garoto urbano salvando o vigoroso senhor rural. Não é à toa que o filme começa com baião e termina com samba.
Talvez não seja desnecessário argumentar que a saída de Luiz Gonzaga e do baião da linha de frente dos palcos não foi uma questão específica dele e da sua criação, mas de um contexto em que a música do interior foi posta à margem dos interesses de modernidade nacional, idealizada pelo presidente Juscelino Kubitschek (1902 – 1976). Ainda na suposição de que alguns acréscimos podem ajudar na compreensão do que não está explicitado no filme, é conveniente dizer que Luiz Gonzaga costumava contar que passara a usar chapéu de couro e gibão desde o dia em que se sentiu nu diante de um artista gaúcho que usava bombacha, colete e lenço. Foi quando resolveu cantar a própria história, deixando de lado o cancioneiro internacional de boleros, valsas e tangos com os quais tentava ganhar a vida no Rio de Janeiro.
Embora tenso, o filme de Breno Silveira tem momentos de agradável descontração e de bom humor. A cena do ensaio dentro de um riacho, que Gonzaga faz com dois novos companheiros de turnê – um alto e outro anão – alivia a platéia dos diálogos arredios que percorrem as conexões nevrálgicas da união de pai e filho. A opção do diretor de reduzir a história de Luiz Gonzaga aos aspectos conflituosos da sua relação com Gonzaguinha, pode causar uma certa insatisfação, enquanto peça de revisão histórica, mas é um trabalho de boa construção dramática, que vale a pena ser visto. Luiz Gonzaga é um ícone necessário e inescapável para quem busca o que o Brasil produz de bom e de melhor.
As curiosidades da relação oscilante entre a ruptura e a aproximação de Gonzagão e Gonzaguinha merecem ser do conhecimento público. E o cinema é um meio excepcional para isso. Gonzaga, de Pai para Filho, segura a atenção do público mais no filho em sua busca pela figura paterna, do que no personagem que assumiu como seu, o filho da cantora e dançarina Odaléia Guedes dos Santos, mulher que conheceu na noite carioca e com quem viveu por alguns anos, evitando que Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior não tivesse nome de pai em sua carteira de identidade, embora isso tenha passado a ser um incômodo e uma irritação constante em sua vida.
Quando Luiz Gonzaga casou com uma fã, que virou sua secretária, por diversas vezes procurou convencê-la a aceitar Gonzaguinha como filho, mas não teve êxito em suas tentativas. Helena passou a ser uma barreira na aproximação dos dois, a despeito de ter sido ela quem solicitou o apoio de Gonzaguinha, então um artista bem sucedido, ao Gonzagão que se encontrava recolhido em Exu (PE). Essa atitude teria levado o filho a procurar o pai em um encontro estressante que, felizmente, resultou em conciliação. O filme afirma que Gonzaguinha teria se interessado em cuidar da obra do pai, mas morreu precocemente em um acidente de carro, pouco tempo depois. O certo é que neste ano de 2012, em pleno centenário do maior artista da música brasileira, seu recanto-museu continua em situação precária.
O filme mostra um Luiz Gonzaga gente do mesmo povo que ele cantou; alguém que sonhava com um filho doutor e por isso pressionava Gonzaguinha a se formar. E bancou os estudos do filho, que fez faculdade de economia, mas acabou mesmo virando compositor e cantor. Mais do que dinheiro para os estudos, Gonzaguinha queria do pai afeto e carinho. Ressentia-se disso e, apesar de associados por um mesmo nome, pai e filho viveram em permanente desavença e rota de colisão. Esses conflitos inscritos no corpo e na alma nos fazem chorar e até a nos convencer de que o tamanho do que significa Luiz Gonzaga não cabe em um único filme.
Aquela vontade de ver um filme sobre Luiz Gonzaga, com abordagem inclinada ao mundo socialmente assimétrico e culturalmente pujante que ele sintetizou em sua arte, com a qual cheguei ao cinema, foi convencida pela narrativa de que é muito importante esse recorte de apresentação do gênio como uma pessoa comum. Foi pensando nisso que tempos atrás o próprio Nelson Mandela resolveu declarar para o mundo que ele não é nenhum santo. A afirmação das fraquezas e dos defeitos tira um peso das costas dos ídolos, trazendo-os para o cotidiano. Seja como for, é impossível não admirar Luiz Gonzaga!