Marcamos para nos encontrar na estação Riquet do metrô de Paris no final da tarde da segunda-feira passada (17). Avisei que estaria com o meu filho Lucas e seu amigo João Gabriel, que mora na capital francesa. Quando nos abraçamos, José Luís Estrada disse que eu estava com a mesma cara e eu falei a mesma coisa para ele; uma licença poética presente na canção Los Amigos, em que ele afirma que “os amigos são como velhos amores”.

Havíamos nos cumprimentado pessoalmente pela última vez em janeiro de 1989, quando Andréa e eu passamos uns dias em Havana e, entre o Pabellón Cuba e a casa de José Luís Estrada, vivenciamos boas situações regadas a música e rum. Naquele momento ele começava a se colocar como um dos expoentes da nova inflexão dada pela música cubana pós-nova trova; uma música que deslizava pelas pegadas de son, timba, guaracha, jazz e rap.

José Luís tornou-se na década de 1990 uma referência das tendências de composição e interpretação que vinculavam a música independente cubana com as novas linguagens musicais contemporâneas. Além de irreverente cantautor, integrou o Duo Cachivache, ao lado de Eugênio Said, preenchendo os espaços de arte livre que criavam em combinações como o jogo de vozes, percussão e dança da rumba guaguancó com elementos da trova.

Na sua mudança para Paris, no início dos anos 2000, passou a fazer percussão no Orishas, grupo de rap de Havana, radicado na França, indicado a vários Grammys pelo êxito de vendas na Europa e nas Américas latina e anglo-saxônica, e premiado com Disco de Ouro do mercado fonográfico espanhol. A energia animada do Orishas (Orixás), cujo nome alude a divindades do candomblé tão presentes na cultura afro-cubana, formou-se pela fusão de música eletrônica com rumba, salsa e samplers de ritmos da herança musical cubana.

José Luís Estrada com o Disco de Ouro conquistado na Espanha. Foto: Flávio Paiva (Jun2024).

Pouco afeito às pressões da indústria do entretenimento, e considerando que a França não é diferente de outros países europeus na definição de parâmetros e filtros ao que seria a música latina, José Luís Estrada vive em Paris, mas mantém-se fiel ao seu público em Havana, para onde vez por outra retorna para fazer shows. Em 2019 lançou em Cuba o seu primeiro álbum solo, acústico, intitulado Avril, que é o mesmo nome da sua filha com a socióloga francesa Virginie Rachmühl.

O álbum Avril (Bis Music, 2019), gravado entre França e Cuba, está disponível nas plataformas de música digital e reúne, em onze faixas, um pouco da trajetória desse artista contagiante, original e inventivo, de voz rouca, enérgica e cativante, de ritmos intensos e letras espirituosas, e até cômicas, como Eso no Pega, Mamita Mía (Isso não funciona, mamãe). É nele que está a canção blues-jazz Los Amigos, que fala das pessoas que nunca se afastam dos nossos corações.

Em Avril encontra-se também uma manifestação da paternidade criadora de José Luís Estrada, na canção lúdico-festiva Avril, Mamá y Papá. No encarte do disco físico, o jornalista cultural cubano Joaquín Borges-Triana realça o alcance dessa obra feita de “canções que nos transmitem uma carga de energia positiva e onde o lúdico não entra em contradição com o reflexivo”.

Reencontrar José Luís Estrada na maturidade dos seus 58 anos reforçou em mim a crença nos artistas autênticos, aqueles dignos da música enquanto arte e cumplicidade espiritual. Como tem luz própria, ele ilumina os caminhos por onde passa e segue a vida ao lado de Virginie, que trabalha com políticas de integração de bairros vulneráveis e economia solidária, da enteada Ana e da filha Avril. Estivemos também com todas elas no apartamento do casal, que tem à sua frente a arborizada área de natação pública do lago artificial Bassin de la Villette.

Fonte: 
Jornal O POVO